Minas Gerais

DESVALORIZAÇÃO

Covid: em BH, técnicos de enfermagem ganham 20% do salário de um médico

Entre os 14 profissionais de saúde que faleceram em decorrência da covid-19, metade deles era da enfermagem

Belo Horizonte | Brasil de Fato MG |
2.521 profissionais da saúde testaram positivo para covid-19 em BH - Créditos da foto: SCHINCARIOL/AFP

O contexto gerado pela pandemia evidenciou, no país inteiro, a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) e, sobretudo, dos profissionais que atendem a população, seja nos hospitais, nas unidades de pronto atendimento (UPAs) ou nos centros de saúde. No entanto, apesar do reconhecimento do heroísmo daqueles que estão na linha de frente do combate ao coronavírus, grande parte dos profissionais de saúde, sobretudo os técnicos de enfermagem, amargam salários baixíssimos e condições precárias de trabalho.

Em Belo Horizonte, o vencimento base de um técnico de enfermagem é em torno de R$ 1400. No entanto, muitos desses profissionais tem recebido menos que um salário mínimo, sem adicionais, como vale transporte, vale refeição e insalubridade. O Brasil de Fato MG teve acesso a alguns comprovantes salariais cedidos pelo Sindicato dos Servidores e Empregados Públicos de Belo Horizonte (Sindibel) e, em um deles, a remuneração líquida de um agente de serviços de saúde contratado chega a R$ 979,25. 

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“Temos uma discrepância grande entre os salários da equipe de enfermagem em relação ao [salário do] médico. Do enfermeiro a diferença dá mais de 50%. Em relação aos técnicos e auxiliares, é em torno de 80%”, relata o Hudirley Rodrigues, conhecido como Enfermeiro Hud, trabalhador da Rede SUS de BH. Ou seja, enfermeiras/os, técnicos e auxiliares de enfermagem, que compõe a categoria da enfermagem, são profissionais que vivem na pele a desvalorização salarial e da própria profissão.

Para Adriana Peixoto, que é técnica de enfermagem do SUS em Venda Nova, a desvalorização da equipe de enfermagem é secular e remete ao início da profissão, que sempre foi relacionada ao cuidado com as pessoas. “Desde o início, ficou parecendo que a enfermagem é para fazer caridade. E não é, a gente se especializou, muitas de nós, mesmo sendo de nível médio, fizemos cursos. Eu mesma fiz curso de curativo, de administração de medicamento, para atender na farmácia. E a gente sempre faz atualização para atendimento nas salas de vacina”, relata. Adriana, que exerce a profissão há 26 anos, atualmente, faz curso superior de gestão hospitalar.

SUS BH possui 2.800 são médicos, 1.900 enfermeiros e 3 mil técnicos de enfermagem

A história da enfermagem relacionada à caridade, que Adriana cita, se refere à uma mulher, Florence Nightingale, considerada a criadora da profissão ainda no século 19. Para a também técnica de enfermagem Cristiane Costa, a desvalorização da profissão está relacionada com esse fato e, mais ainda, com o trabalho de cuidados que historicamente são tidos como responsabilidade feminina.  “Hoje em dia, com as mulheres na linha de frente da ciência, as coisas estão melhorando, mas a gente ainda enfrenta muitos limites. Os nossos salários sempre vão ser menores e os médicos já vem de uma aristocracia, dos doutores. O médico é sempre um doutor, na maioria das vezes ele não tem doutorado, é apenas um residente. São questões sociais, né?”, analisa Cristiane, que exerce a profissão há 13 anos e, atualmente estuda gestão hospitalar e psicanálise clínica.

Valores dos plantões

Segunda tabela da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) – estabelecida pela Lei Municipal 11.217/2020 –, os valores dos plantões extra para técnicos de enfermagem são R$119,85, durante a semana, e R$153,65, nos finais de semana. Para enfermeiras/os, os valores são de R$255, durante a semana, e R$327,78, nos finais de semana. Para médicos, os valores dos plantões chegam a R$1106,24 nos finais de semana, portanto, com uma diferença de mais de 87% comparado aos técnicos de enfermagem.

Os valores baixos, pagos aos profissionais da enfermagem, seriam um dos motivos responsáveis pelas escalas incompletas na rede SUS BH. Segundo informações do Sindibel, em uma UPA da capital já houve apenas sete técnicos de enfermagem, ao invés de 14, em um plantão, embora a PBH tenha autorizado todas as contratações necessárias. 

Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde informa que há 21 mil profissionais, dentre efetivos, contratados e outros vínculos que atuam nas diversas unidades de saúde gerenciadas pelo município. Do total, cerca de 2.800 são médicos, 1.900 enfermeiros e 3 mil técnicos de enfermagem. Ao todo, são 11 mil efetivos e 7 mil profissionais contratados, sendo que durante a pandemia foram cerca 3 mil novos profissionais contratados.

Em relação às remunerações dos profissionais, a prefeitura esclarece que os “valores e benefícios pagos aos profissionais atendem à política remuneratória do município” e “seguem o princípio da legalidade, amparado nas leis municipais. No caso dos profissionais contratados temporários administrativamente, não há previsão legal de pagamento do adicional de insalubridade”. Além disso, afirma que “não há remuneração bruta inferior ao salário mínimo”.

:: Leia também: Condições de trabalho influenciam número de mortes dos profissionais de saúde ::

Segundo o Sindibel, 90% dos profissionais da enfermagem recebem a título de adicional de insalubridade o valor de R$ 71,70, valor fixado pelo artigo 18 da Lei Municipal 9.443/2007 que sofreu uma única correção, em 2018, de 2,43%. O boletim epidemiológico de Belo Horizonte, divulgado na sexta (30), conta que são 2.521 profissionais da saúde que testaram positivo para covid-19, sendo que 489 são técnicos de enfermagem e 144 são enfermeiras/os. 

Em levantamento realizado pelo Conselho Municipal de Saúde, em Belo Horizonte morreram 14 profissionais que atuavam na linha de frente. Desses, sete eram servidores públicos municipais, dois da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), um da Santa Casa/UPA Centro Sul e quatro trabalham em clínicas e hospitais privados. Ao todo, sete eram técnicos de enfermagem. 

Perfil da enfermagem

Um estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 2015, aponta que a enfermagem no Brasil é composta por um quadro de 80% de técnicos e auxiliares e 20% de enfermeiras/os. O estudo, chamado Perfil da Enfermagem no Brasil, aponta que, naquela época, 1,8% de profissionais da enfermagem recebiam menos de um salário-mínimo por mês, e 16,8% dos entrevistados declararam ter renda total mensal de até R$ 1 mil. 

Todos os setores de empregabilidade da enfermagem apresentaram contratações com subsalários, sendo que privado (21,4%) e o filantrópico (21,5%) eram os que pagavam salários com valores de até R$1 mil. A categoria da enfermagem é predominantemente feminina, sendo composta por 84,6% de mulheres.

Luta pelo piso salarial

Nesta semana, a senadora Zenaide Maia (Pros-RN) emitiu parecer favorável ao Projeto de Lei (PL) 2564/2020, de autoria do senador Fabiano Contarato (Rede-ES), que cria o piso nacional para enfermeiros de R$ 7.315 mensais; de R$5.120,50 para técnicos de enfermagem e de R$ 3.657,50 para auxiliares de enfermagem e parteiras. O projeto ainda fixa a jornada de trabalho de 30 horas semanais para toda a categoria.

“É um passo importante para a aprovação do PL, que vem corrigir a disparidade entre a responsabilidade inerente aos cuidados de enfermagem, a exigência de formação e a remuneração oferecida aos profissionais”, aponta Betânia dos Santos, presidenta do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen).

Segundo o Cofen, em todo o país, são 2,4 milhões desses profissionais, que representam mais da metade dos trabalhadores do SUS. Um ofício, protocolado no último dia 16 e assinado por todos os Conselhos Regionais de Enfermagem, foi enviado ao presidente do Senado Rodrigo Pacheco (DEM MG) pedindo o apoio na aprovação do projeto. Se aprovado, seguirá para apreciação da Câmara dos Deputados.

14 profissionais de saúde morreram na capital, metade eram da enfermagem

A aprovação da medida tem sofrido resistência de setores privados, da Saúde Suplementar, como a Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (ABRAMED), Associação Nacional dos Hospitais Privados (ANAHP), Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde), Federação Brasileira de Hospitais (FBH), Associação Brasileira dos Planos de Saúde (ABRAMGE), Confederação Nacional das Cooperativas Unimed Brasil, Confederação das Santas Casas de Misericórdia e Hospitais Filantrópicos (CMB) e Federação Nacional de Saúde Suplementar (Fenasaúde). 

Em nota, a Fórum Nacional da Enfermagem, cita essas entidades e afirma que são as mesmas que “fazem campanhas homenageando esses profissionais, pedindo aplausos da população”, mas que “não aceitam pagar salários dignos a enfermeiros, técnicos e auxiliares. Tudo isso é muito triste e vergonhoso”. 

Edição: Elis Almeida