Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | A vida ou uma empresa

"Uma empresa é só um pedaço de papel em que, por convenção, cremos, aceitamos e até damos valor"

Porto Alegre | BdF RS |
Golpistas gaúchos entenderam e aplicaram com rigor o conceito original de “empresa”. Criaram cerca de 50 empresas para fraudar licitações - Reprodução

A "moeda", o dinheiro, não passa de uma convenção em que todos concordam e confiam. Surgiu para facilitar o comércio que até então era feito por troca, escambo. Um pedaço de metal ou outro material qualquer teria um valor estipulado e equivaleria a um determinado valor. Significa que, se ninguém acreditasse no dinheiro, ele não valeria nada.

Há alguns dias, uma grande operação foi deflagrada em dez cidades da Região Metropolitana e do Litoral Norte do estado contra uma organização criminosa criada há cerca de 30 anos e que participava de processos licitatórios. O que mais chama a atenção é que os golpistas entenderam e aplicaram com rigor o conceito original de “empresa”: criavam uma empresa para fraudar licitações, tomavam a verba, não cumpriam com as obrigações, desmanchavam a empresa deixando o prejuízo, abriam outra empresa para participar de licitações, faziam tudo de novo e assim por diante, “empresa” por “empresa”. No total, foram cerca de 50 empresas.

Ora, os bandidos não fizeram nada além do que foi a intenção e o objetivo exato da invenção do que hoje chamamos de “empresa”, lá no Século XV. A peste negra matara 70% da população da Europa até 1351. Depois de 70 anos dessa tragédia, com a Europa em franca recuperação, o comércio está indo de vento em popa, no sentido figurado e no sentido literal: barcos cruzam o Mediterrâneo de Leste a Oeste lotados de mercadorias do oriente.

A saúde e a economia em alta da Europa anseiam por tudo o que possa ser comprado, de especiarias a tecidos. Os mercadores aceitam encomendas e contratam empréstimos ou investimentos com banqueiros, uma classe ainda não formalizada de indivíduos que fazia posto nas praças, ruas e no porto, oferecendo dinheiro, de olho nos lucros que viriam. Depois de tudo arranjado, partiam para o oriente.

Veneza era o centro das transações e onde todos os aspirantes à riqueza, fossem mercadores ou banqueiros, aportavam. Mas havia mais gente ambicionando esses tesouros. Ladrões, punguistas, golpistas, falsários, desempregados e esfomeados faziam ronda e vítimas nas praças e mercados da cidade. No mar, outro rapinador ficava à espreita: o pirata. O mais famoso deles foi Hayrettin Paxá, ou seu nome turco, Khair-Ed-Din, mais conhecido pela alcunha que, quando dita, fazia tremer qualquer marinheiro: Barbarossa.

Antes de chegarem a seu destino lotados de preciosidades orientais, os barcos dos mercadores eram tomados de assalto, roubados ou sequestrados não só com os produtos, mas com toda a tripulação. Os prejuízos não eram apenas de trabalho e tempo ─ já que uma viagem de ida e volta pela rota da seda até o oriente poderia durar até seis anos ─, mas muito mais em produtos que, se não ao todo luxuosos, eram essenciais à Europa para disfarçar o mau cheiro de alimentos e das pessoas e para conservar os alimentos.

Sem a mercadoria, sem o dinheiro e muitas vezes até sem o barco, o mercador não tinha como pagar financiadores da sua viagem e honrar as encomendas pelas quais recebera na partida. O banqueiro não podia ressarcir seus “investidores” e perdia sua credibilidade. A falência de mercador e de banqueiro era certa e a morte muito provável. Nesses casos, em geral, era o que acontecia a ambos: assassinados ou mutilados pelos credores.

Como estratégia contra a pirataria mediterrânea, alguns mercadores e banqueiros chegavam a pôr ao mar três barcos ao mesmo tempo, na esperança de que os piratas levassem um ou dois para conseguir aportar ao menos um deles em Veneza. Porém, quando funcionava, as mercadorias que chegavam tinham que pagar pelas roubadas e então os preços saiam do nível do mar e iam para o pico do monte Etna. Os assassinatos e mutilações a banqueiros e mercadores tornaram-se comuns na época.

Foi então que mercadores, para salvar a própria vida, desistiram de tentar fugir dos piratas e dos credores. A alternativa encontrada foi um achado: não mais fazer negócios usando o próprio nome, mas o nome de “algo”, de alguma coisa que na verdade não existe, que não pode ser mutilado ou morto, que pode sumir sem que ninguém sinta falta e que seja substituível: uma empresa!

A palavra “empresa” retrata a “tarefa” desses desbravadores ao empreenderem viagens por mares e desertos. Em Veneza, 117 pessoas se uniram e criaram o que seria um centro comercial ou mercado central. Nesse estabelecimento os mercadores fundaram suas empresas.

Agora, quando tivessem prejuízos ou fossem ameaçados, sentavam-se com seus clientes ou financiadores para “negociar”. Assim, poupavam a própria vida e, quando possível, a empresa.

Mas às vezes a empresa sofria um golpe tão forte que não podia ser salva. Em vez de pagar com a própria vida, o mercador anunciava a falência daquele ente imaginário cujos bens seriam rateados entre credores. Em seguida abria outra empresa, pois sua riqueza estava a salvo com algum banqueiro ou ouro da África.

Não havia regulamentação alguma naqueles primórdios empresariais, o que significa que se podia quase tudo, todo tipo de manipulação ou arranjo, desde que fosse lucrativo. O que não difere muito do que acontece hoje. Um “empresário” daquela época podia abrir e fechar dezenas de empresas em alguns anos, mas se mantinha vivo e cada vez mais rico. Todos aceitaram a tal coisa imaginária e até se admiravam da esperteza. Assim, foi aceita e se tornou realidade.

Em seguida foram os banqueiros que viram vantagem nessa estratégia e, em vez de continuarem vítimas dos calotes, adotaram a ideia criando também estabelecimentos e salvando suas vidas e finanças. Futuramente esses banqueiros ─ um deles, Cosimo de Médici, que ampliou sua fortuna em Veneza ─ viriam a financiar o renascimento com seu dinheiro.

O dinheiro. Hoje, todo o dinheiro do mundo é estimado em 60 trilhões de dólares, mas se somarmos todas as moedas e cédulas do planeta teremos menos de 6 trilhões de dólares. “90 por cento de todo o dinheiro ─ mais de 50 trilhões de dólares que aparecem nas nossas contas ─ existe apenas em servidores de computador” (Y. N. Harari, Sapiens). Portanto, a quase totalidade do dinheiro do mundo é “imaginação coletiva”, um “acordo de confiança mútua” em que todos nós cremos. Tanto cremos que ninguém vai sair correndo para sacar sua poupança após ler esse parágrafo.

Assim como se dá com o dinheiro, também se dá com as empresas: são convenções. Uma empresa é só um pedaço de papel em que, por convenção, cremos, aceitamos e até damos valor. Se não acreditássemos, se encarássemos como um imaginário, uma ficção, ela não existiria.

* Jornalista

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


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Edição: Katia Marko