Rio Grande do Sul

PANDEMIA

RS apresenta novo modelo de gestão da pandemia com maior autonomia a municípios

Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato RS chamam atenção para falta de comunicação e riscos de maior flexibilização

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Governador anunciou novo sistema de monitoramento da pandemia no RS nesta sexta-feira (14) - Felipe Dalla Valle / Palácio Piratini

Após um ano do modelo de distanciamento controlado, que norteou as ações de combate à pandemia no Rio Grande do Sul, nesta sexta-feira (14), o governador Eduardo Leite (PSDB) anunciou sua atualização. No novo modelo, denominado “Sistema 3As de monitoramento”, deixam de existir bandeiras de classificação das regiões, substituindo por três níveis de classificação para a gravidade da pandemia nas 21 Regiões Covid em que o estado está dividido.

Segundo o governador, o objetivo da mudança é simplificar as normas, que considera terem ficado muito complexas no decorrer da pandemia. Além de dar mais autonomia aos prefeitos. O estado fica responsável apenas por um regramento geral, os protocolos fixos, que devem ser seguidos por toda a população, como o uso de máscara e manutenção do distanciamento mínimo em locais públicos.

Já os protocolos variáveis terão uma proposta padrão estadual, mas podem ser ajustados pelos municípios de uma região, que precisam de dois terços de aprovação entre as prefeituras. Na prática, a determinação de restrições mais ou menos flexíveis, como proibição no funcionamento de lojas, bares ou empresas, ou mudança do horário de funcionamento, fica a cargo dos municípios, e não mais do governo estadual.

Os 3 As do novo modelo referem-se a Aviso, Alerta e Ação. No primeiro, quando detecta uma tendência, o GT Saúde emite um aviso para o respectivo comitê técnico regional. Com isso a região não precisa adotar novas medidas, apenas redobrar sua atenção para o quadro da pandemia. No segundo, quando detecta uma tendência grave, o GT Saúde informa simultaneamente o Gabinete de Crise e a região sobre a orientação para a emissão de um alerta. Se o Gabinete de Crise decidir não emitir o alerta, a região segue em monitoramento até a próxima reunião do GT Saúde; se emite o alerta, parte-se para a necessidade de ação.

Emitido o alerta, a região tem 48 horas para responder sobre o quadro regional da pandemia e apresentar um plano de ação a ser adotado. Se o Gabinete de Crise considerar adequada a resposta da região, a proposta é imediatamente aplicada e divulgada no site do município. Se o Gabinete de Crise não considerar adequada a resposta, o governo estadual poderá estipular ações adicionais a serem seguidas na região em situação de alerta.

De acordo com Leite, o decreto atualizado será preparado ao longo das próximas horas e enviado às prefeituras. O novo modelo passa a valer no domingo (16). O site do novo modelo já está no ar: http://sistema3as.rs.gov.br/

Avaliação de especialistas

Nesta semana, o Brasil de Fato RS ouviu especialistas sobre o novo modelo e as consequências que ele pode trazer. Apesar de visões distintas, eles são unânimes em afirmar que a situação ainda é preocupante e requer cuidado, apesar da queda dos indicadores. O estado viveu, entre o fim de fevereiro até meados de abril, o pior momento da pandemia, com o colapso do sistema de saúde e exaustão profunda dos profissionais da linha de frente. O mês de março foi o período mais letal e mortal desde a chegada do coronavírus no estado.

É preciso enfatizar a comunicação

Reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e membra do comitê científico criado pelo governo estadual durante a crise sanitária, Lucia Pellanda, destaca que tanto o modelo anterior como o que entrará em vigor a partir deste domingo são ferramentas para medir a realidade. Avalia que para além do modelo, é importante enfatizar a comunicação e as ações preventivas.

“O modelo anterior tinha um determinado objetivo que era evitar o esgotamento dos leitos. Esse é um objetivo bem importante e nobre, só que ele não é o único em um contexto de pandemia. Tem as ações que a gente precisa fazer antes das pessoas precisarem dos leitos, de preferência que nunca precisem dos leitos, que são a comunicação efetiva para o cuidado da sociedade: distanciamento, máscara, ventilação, vacina, testagem, isolamento, contatos. Todas essas coisas precisam estar bem explícitas”, pontua.  

A reitora entende que uma parte da população gaúcha se relacionava bem com o modelo anterior e seu esquema de cores, contudo ele foi superestimado. “Isso ajuda na comunicação. Ao mesmo tempo acho que ele foi considerado muito mais do que deveria. Se não tiver as outras coisas, continua sendo o mesmo problema. Não vai mudar o problema mudando o nome”, reforça.     

Maior autonomia a municípios

Uma das alterações do novo modelo é uma maior autonomia aos municípios em relação ao enfrentamento da pandemia, que podem criar protocolos diferentes do estadual. Para Pellanda, há prós e contras a serem levados em conta.

Do lado positivo está o fato de cada cidade conhecer a sua realidade. “Pode ter um município, basicamente rural, em que as pessoas estão afastadas já naturalmente, esse pode ter um tipo de atitude em relação a outros com grandes aglomerados urbanos. Então a gente não pode tratar todos os municípios da mesma forma. Conhecer a realidade local é muito importante”, exemplifica.

Do lado negativo, a reitora afirma que a pandemia precisa de uma coordenação central que traga uma mensagem unificada. “Todos os municípios precisam entender que nós dependemos uns dos outros. Então não adianta um prefeito de uma cidade tomar uma decisão e o do lado tomar uma decisão diferente, se todos eles compartilham o mesmo sistema de leitos.”

Pellanda vê com preocupação que a população interprete a mudança como se a pandemia tivesse acabado e que está tudo liberado. “Já estamos mostrando uma certa reversão de tendência, se as pessoas continuarem assim a coisa vai ficar realmente bem crítica. É isso que eu digo, não é o modelo que muda isso, é a comunicação. Não devemos focar a discussão no modelo em si e sim no que está acontecendo. E o que está acontecendo é que não está liberado. Precisamos comunicar para a sociedade que o engajamento precisa continuar, os cuidados tem que continuar. Não saímos da zona de risco. É um momento de não descuidar-se, de não liberar”, salienta.

Risco da politização do combate à pandemia

Coordenador da pesquisa Epicovid-19, referência no mapeamento do avanço da doença em todo o país, o ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pedro Hallal, espera que o novo modelo seja mais técnico e menos político, como acabou tornando-se o anterior. Para ele, o modelo com base nas bandeiras, de maio do ano passado, quando foi criado e até por volta de setembro do ano passado, conseguiu manter com um foco técnico, que era cumprido e que as pessoas confiavam nele. “De setembro até hoje o modelo foi muito politizado, as cidades podendo recorrer dos resultados, cogestão”, aponta.

Hallal disse que ainda não se aprofundou nem tem acompanhado o que foi anunciado sobre a mudança. Contudo frisa que preocupa o excesso de protagonismo dado às prefeituras, tirando o papel do estado na administração da pandemia. “O governo federal já fez essa coisa e acho péssimo, e espero que o estado não repita de eximir-se da responsabilidade de coordenar as atividades de enfrentamento”, sublinha.

Indagado sobre o momento da pandemia no estado, Hallal diz que o RS ainda está em um patamar elevado apesar da melhora nos índices. “Não se compara aquele horror que foi o meio de março até o começo de maio, mas a situação ainda não é confortável, muito longe disso. Vemos uma abertura bem grande, e sabemos que essa reabertura dá efeito rebote. Então, muito em breve, é possível que os números não caiam o quanto iriam se tivéssemos mantido as medidas de contenção”, aponta.

Segundo reforça o coordenador, ninguém está seguro enquanto todos não estiverem seguros. “Não adianta as pessoas acharem que por estarem vacinadas ou já terem tido covid, que elas podem deixar degringolar as medidas de cuidado individual porque assim não se vence uma pandemia”, finaliza

Modelo era insuficiente, mas remodelagem é pior

O médico, doutor em Saúde Coletiva e professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Alcides Silva de Miranda, foi uma das pessoas a enviar considerações ao governo sobre o novo modelo.

“Expresso que o modelo anterior era insuficiente e deveria ser aprimorado. Todavia, a remodelagem é pior, mantém as insuficiências de monitoramento do modelo anterior (em termos de Vigilância Epidemiológica e análises prospectivas, de circuitos de alertas, etc.) e estabelece uma dissociação equivocada entre medidas genéricas (que ficariam a cargo do governo estadual) e medidas específicas (delegadas aos municípios)”, afirma.

Miranda entende que a postura do governo estadual é de omissão seletiva e desresponsabilização, o que tende a gerar iniciativas municipais também dissociadas. “Considerando os âmbitos regionais de exposição e circulação de contágios (transmissibilidade), a ainda baixa cobertura vacinal e a cautela em se considerar que a atual fase de decréscimo no registro de casos possa ser intervalar (como ocorreu nos últimos meses), com riscos para refluxos, a iniciativa é contraproducente e negligente em relação aos riscos implicados”, avalia.

O documento faz um apelo ao Gabinete de Crise e ao governo estadual para “que reconsiderem a proposta anunciada, que incluam um conjunto maior de especialistas em Vigilância Epidemiológica e em outras áreas afins, que já vêm trabalhando com análises correlatas, visando aprimorar o monitoramento da situação pandêmica e apresentar alternativas estratégicas com melhores margens de segurança e proteção coletiva”.

A reportagem do Brasil de Fato RS procurou a Secretaria Estadual de Saúde durante esta semana a fim de esclarecer alguns pontos levantados pelos especialistas. Até o fechamento desta matéria, a pasta não havia retornado os contatos.


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Edição: Katia Marko