Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | A cultura da vergonha e a proibição do discurso sobre a Copa América

Não podemos deixar que o projeto de nação da extrema direita seja forjado à base de esquecimentos e de esquecidos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"As tratativas entre o governo de Jair Bolsonaro e Conmebol foram mal vistas e repercutiram negativamente nas mídias nacionais e internacionais - Foto: Lucas Figueiredo/CBF

Dia após dia, Bolsonaro tem agido sem medir esforços para ferrar de vez com a nossa saúde mental. O texto de hoje trata de descortinar novos parâmetros de prioridade à brasileira, escolhidos pela supervisão negacionista do governo. Ao medir provas de força com inúmeros brasileiros nesta pandemia, a nova polêmica popular gira em torno dos prejuízos humanos em receber a Copa América, nos grandiosos estádios que temos espalhados pelo país. De fato, o grande faturamento político sob a dinâmica do caos não intimidou o governo a cancelar as celebrações deste megaevento. Mesmo diante da constatação urgente de novas variantes à espreita, e das sucessivas falhas técnicas escapulidas entre as falas depoentes na CPI, continuamos às voltas com novos escândalos.

De fato, o Brasil tem status de uma cultura internacional sempre disposta a enfrentar grandes desafios humanitários usando astúcia, ao invés de investimentos indispensáveis por parte do Estado. A prática da livre expressão como demonstração de tolerância máxima das nossas instituições rege, por aqui, as métricas da nossa democracia. Negar fatos, saberes, proibir discursos. A pandemia foi o registro mais franco destas condições. Isto é, qualquer um, com um pouco de ironia pontual, se resigna a classificar nossas atuais condições de vida como rigorosamente alarmantes e contrafactuais, nesta pandemia.

Pois bem, percebe-se que a prioridade econômica, diferentemente de todos os governos já experimentados, é afiançar legalmente a disseminação de novas cepas do vírus, e não o contrário. Não há dúvidas ministeriais de que recepcionar novas variantes seja um preço plausível a se registrar, em troca de receber apoio e importância esportiva da copa, como acontecimento de grande relevância continental. Enquanto a peste do vírus adquire direitos de livre circulação constitucional em solo brasileiro; nós [os idiotas úteis – assim, fomos batizados pelo governo], permanecemos em desgraça: enclausurados em nossas casas há quase dois anos, dilacerados entre dilemas e perdas familiares, pelo medo e pelo do desemprego.

As tratativas inerentes entre o governo de Jair Bolsonaro e a confederação sul-americana – Conmebol, para sediar a Copa América no país, foram mal vistas e repercutiram negativamente nas mídias nacionais e internacionais. De fato, ambos têm em comum a adoção de livres práticas antidemocráticas na sua fórmula de gestão. Para o governo, essa estratégia não deixa de ser vista como uma medida paliativa para aliviar as compressões da CPI, e com isso, desacelerar o ritmo de eleitores arrependidos nas pesquisas. Diante da recusa de vários países sul-americanos em assumir a participação nos jogos, no pior registro possível de novas variantes, reforçam as mesmas iniciativas das direções desde 2020, sobre a não suspensão de torneios regionais. Em países vizinhos como na Argentina e na Colômbia, a realidade cedeu às instabilidades sociais e sanitárias, internas, desencadeadas pela incapacidade dos Estados em manter o controle da pandemia. Mesmo assim, na Colômbia estudava-se a probabilidade de manter as datas dos jogos com público presente.

O fato de que inúmeros trabalhadores da CBF estejam contraindo o vírus sem a possibilidade de receberem a vacinação inclui uma lista enorme, e reúne jogadores, equipes técnicas e trabalhadores terceirizados. O descaso com o andamento das vacinações tornou-se mais uma das muitas de injustiças, publicamente distribuídas, nesse país. O clube gaúcho Internacional foi um dos que se negou a receber a vacina oferecida pela Conmebol, optando por respeitar o Plano Nacional de Imunização (PNI), do SUS, às demais equipes. Buscando minimizar esse barulho e desincentivar ações semelhantes, o ex-ministro da saúde Marcelo Queiroga, assegurou que o primeiro critério ante a realização da Copa América seria a “adoção de medidas de segurança sanitárias”. Sem isso, “o atleta não entra em campo” – disse (sobre os casos positivos de covid-19). Na CPI, no dia 8 de junho, declarou o contrário do que esperávamos: “Não temos no quadro do Ministério da Saúde, médicos infectologistas”.

Contar tem sido muito, muito difícil...

Desde o início da pandemia, até o presente momento, estipula-se que por trás da grave marca de 500 mil mortes, há o agravante de um colapso social compartilhado, e ainda distante de claras estimativas: segundo o levantamento de um estudo internacional, a covid-19 vêm encurtando as expectativas de vida em 18 anos dos brasileiros. Somados, estes percentuais representam 9 milhões de anos de vida encerrados precocemente, que dão início à tortuosa recusa do direito de se despedir-se.

Não é só pelo tempo que perdemos. Essa renúncia forçada de fazer balance, de remexer em certos lugares da memória. A falta dos rituais da vigília, do adeus dos familiares e amigos soluça em quem acabou por ficar. A autonomia de reivindicar o direito a esse momento também não desaparece do nosso senso de comunidade política. Ele sobrevive como responsabilidade ética para quem continuar a viver, e mesmo nos cuja recuperação ainda está incompleta. Muitas vítimas que sobreviveram à pandemia seguem perdendo e hoje, se sujeitam a conviver com as dolorosas sequelas e limitações imprevisíveis pelo avanço da medicina. Há muitas coisas que ainda nos resta entender, já outras, sobram críticas à nossa lucidez.

A direção do governo na pandemia é uma delas, e parece comprometida a imunizar, tão somente, a ignorância sobre os avanços científicos, sobre a corrupção e o esclarecimento popular que dispomos hoje, para combatermos não apenas o vírus. A incerteza das respostas públicas dadas ao tratamento da saúde pública no Brasil começou a pesar sobre a Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI, e já abalou manifestações em todo o país diante das declarações de que 3 a cada 4 mortes poderiam ter sido evitadas. Nas ruas, há reações em dois sentidos: os compatriotas e instituições correligionárias, marcados pela mesma visão fulminante da violência, enquanto fórmula de conservar privilégios aos antigos poderes. E há a reação dos influenciáveis pelos já conhecidos líderes desertores da democracia, ‘que se acham acima da constituição’ – conforme nos alerta Fachin.

A militância pró-governo enxerga os atos de defesa à vida e a autopreservação não como direitos sociais à saúde, mas como fontes de insubordinação. A postura de um suposto boicote público à Copa América rendeu a Tite uma multa de R$ 24,6 mil aplicada pela organização. Ele e a seleção foram condenados a críticas antipatrióticas, por provocar a autoridade da presidência. Não era. Do contrário, tratava-se de argumentar sobre as dimensões de risco humanitárias, mais do que lançar um manifesto político. Ainda que na prática, dadas as circunstâncias, ambas as ações precisem se reforçar. Esse episódio serviu para mostrar a forma como o negacionismo opera, colocando palavras e, sobretudo, suspeitas na boca dos outros. Nada mais é do que aquele sujeito que se antecipa em distorcer os padrões da realidade e a rejeitar as possibilidades de futuro porque no fundo, no fundo, acredita que o seu negacionismo seja mais reconfortante. Traz uma aparência de ‘segurança emocional’ a perspectiva de vitória pessoal sobre o contágio. Eles se percebem diferentes, pouco empáticos sobre outras realidades e, quando confrontados, julgam o olhar muito pessimista como mais um episódio de ‘mimimi da esquerda’. Nesses casos, é a imunidade da abjeção de consciência que encontra forças na liderança afirmativa da família Bolsonaro.

No pós-Brasil de Bolsonaro, a intolerância recebe novos arrabaldes da lei. A maior prova disso está na pluralidade dos regimes jurídicos emergenciais aprovados, na alta incidência de preços sobre itens alimentares mais básicos, o valor do auxílio que mal paga o que comer, a ameaça de novos regramentos sobre a demarcação e mineração em terras indígenas, o retorno do voto impresso, entre outras medidas, tudo isso acertado sob o intermitente pretexto da pandemia. A mudança de provimentos na forma como o trabalho se organiza (pela dissolução de formas mais sólidas de organização), à exemplo, a dissolução dos direitos. Todas essas medidas multiplicam-se em benefício de interesses úteis ao governo Bolsonaro.

Neste período interminável de perplexidade, de incertezas e de fragilidades divididas, a tragédia do luto, da violência e da desigualdade ressignificam nossas categorias de existência por classe. A sensação de perda continua nos acompanhando, ainda que não saibamos bem quantificar diretamente o quando fomos desfeitos. O luto não é somente meu ou do outro, ele é um fenômeno que escancara seus efeitos na esfera pública. É inevitável encarar o fato de que a gravitação de outras tragédias também nos afetam, e, que subitamente, destroem as possibilidades de germinar futuros, ou as tornem, em partes, mais complexas e desconfortáveis do que antes  — sobre a destruição das possibilidades de imaginação. As narrativas do presidente buscam justamente transmitir imagens de mundo onde não nos é possível escolher, e por isso recuamos.

A própria interpretação constitucional e as atuações legislativas também se demonstram partidárias, a ceder forças de lei para encampar tiranias ritualizadas pelo presidente. Se excepciona até mesmo sobre um suposto “Gabinete do Ódio” que, na pior referência literária atribuída à obra 1864 - de George Orwell, reescrevia fatos, adulterava dados, e figurava às escusas como órgão consultivo do presidente sobre a adesão e o uso da cloroquina, da ivermectina e de outras clínicas (comprovadamente) sem eficácias científicas contra a covid-19.

No entanto, usar o antipatriotismo como um arremedo contagioso, a fim de criar constelações ideológicas segregacionistas, de imediato, instrumentalizam dúvidas, preconceitos e criam importâncias diferentes, dadas as crenças artificiais e subjetivas – sobre o amor à pátria. Esses argumentos trazem consigo antigas inspirações autoritárias, e são artifícios [bastante covardes] para serem admitidos. Afinal, quem é aquele que tem condições de ‘bater o martelo’ sobre o modelo de patriotismo ideal sem olhar para dentro de suas práticas? Os manifestantes, militantes e críticos de oposição não teriam, sequer, nenhuma legitimidade para reagir ao estado de privação de seus direitos mais elementares, agravados no cenário da pandemia?

A liberdade de expressão não deveria ser equiparada a ambos pela expressão do mesmo direito? À medida que afundamos na racionalidade bolsonarista, é seguro dizer que todos aqueles que se identificam no patriotismo de slogan “Pátria amada Brasil”, ou daqueles eleitores (ressentidos) que se auto flagram, diariamente, estrangulando as suas próprias dúvidas, apenas para não dar o braço a torcer. Não se trata aqui de defender uma cultura da vergonha voltada para a vingança – antipetismo. As apostas já condenadas na liderança e na capacidade de desempenho político de Jair Bolsonaro nos levou à ruína representativa. Admitir isso, o quanto antes, deveria nos trazer redenção, e não ser tomado como um desafio ou reforço do individualismo. De certo, arrepender-se seja privilégio dos maduros. A indiferença cínica ou a positividade de um otimismo ingênuo são questões próprias que vão além de afetar apenas nossas convicções morais. A vergonha é o caminho que devemos percorrer. Sem ela como aliada, o risco de anacronismo e de regressão cognitiva torna-se alto.

O historiador italiano Carlo Ginzburg é didático ao esvaziar o radicalismo patriótico como concepção de interesse subjetivo. Para ele, quando sentimos vergonha de nosso país de origem, passamos a nos conectar aos verdadeiros vínculos de pertencimento que nos une a ele. Ou seja, ao contrário do que se pensa, não seria o amor o laço que nos move ao civismo. A maior prova disso é quando o profundo sentimento de desimportância nos é subentendido, quando nos damos conta de que estamos sendo incluídos internacionalmente como cúmplices de quem promoveu genocídios na liderança da república.

A renúncia crítica a esse “modelo gratuito de nação”, que em nada se confunde com atribuir a culpa somente do mal estar no plano individual, e sim não desonerar a responsabilidade criada pelos ajustes econômicos neoliberais em precarizar a vida do brasileiro. Eis a diferença entre a cultura da culpa e da vergonha; a primeira é internalizada, e é o fundamento dos dogmas cristãos; enquanto a segunda é externa. A vergonha aproxima as pessoas a compartir dos mesmos sentimentos. A vergonha nos comove à reparação, à luta diária que se materializa na assistência prestada às comunidades através de doações, associações, no respeito às medidas de segurança sanitárias, no uso da máscara e na prática do isolamento social. É, basicamente, pregar o contrário do que tem sido feito e falado pelo presidente da república: estimular as campanhas pró-vacinação regular e exercer o direito ao descontentamento presente nas ruas. Nas exigências da cidadania reivindicadas nos atos #ForaBolsoraro, em todo o país.

Somos nós que damos nomes aos mitos...

É preciso ter coragem para assumir as consequências sobre quem se elegeu. Vergonha pelo que a política de Bolsonaro representa e pelo retrocesso que está fazendo com o legado democrático das instituições. Não podemos deixar que o projeto de nação da extrema direita seja forjado à base de esquecimentos e de esquecidos. E, nesse caso, o incômodo benigno da vergonha deve se fazer mais forte do que o vínculo do amor. Pouca gente se dá conta de que a vergonha também liberta. “Dos que têm vergonha, mais foram salvos do que mortos” (Coríntios 1:15). Agora é a hora e o momento de remoer as más ações e livrar-se do medo da exclusão. Assim como despojar-se no lodo não é a melhor maneira de ficar ‘limpo’, insistir nos mesmos erros à espera de resultados defensáveis, diferentes destes que aí estão, são ajustes sociais que conservam o gosto pela autoridade, pelo reconhecimento do igual em um mesmo futuro, tornando-o novamente o único possível.

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Vida Precária: os poderes do Luto e da Violência. [tradução Andreas Lieber; revisão técnica Carla Rodrigues]—1ª ed.; Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

GINZBURG, Carlo. O vínculo da vergonha. Publicado Objekte – Schauplätze – Denkstile, org. Corina Caduff, Anne-Kathrin Reulecke e Ulrike Vedder. Munique: Wilhelm Fink Verlag, 2010, pp. 19-26.

ORWELL, George.1984. Tradução Alexandre Hubner Heloisa Jahn. 1ed – São Paulo: Companhia das letras, 2019.

* Tainá Machado Vargas é mestra em Sociologia do Direito pela Universidade La Salle, Canoas/RS. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. É colunista independente da Empório do Direito e outras Mídias digitais. Pesquisadora vinculada a Grupos de Pesquisas CNPq nas seguintes áreas: terceirização do trabalho, gênero e neoliberalismo. 

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira