Rio Grande do Sul

Identidade

Mulheres indígenas na pesquisa afirmam que indígena é indígena em qualquer lugar

Taís Salomão e Elis Ribeiro defenderam recentemente trabalhos acadêmicos na UFRGS e relatam desafios

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Taís Aline Baptista Salomão à esquerda e Elis Alberta Ribeiro dos Santos à direita, indígenas em contexto urbano - Arquivo Pessoal

"O Estado nos nega a identidade, o colonialismo faz com que a maioria tenha vergonha de se reconhecer e os poucos que ainda tentam cobram um documento que ateste, mas há 521 anos queria saber qual foi o documento que os invasores receberam para ter certeza que aquelas pessoas realmente eram indígenas", afirma a indígena em contexto urbano Taís Salomão.

Em entrevista ao Brasil de Fato RS, Taís Aline Baptista Salomão e a também indígena em contexto urbano Elis Alberta Ribeiro dos Santos falam sobre suas trajetórias e sobre o produzir acadêmico. E falam sobre a dificuldade e importância de manter a identidade indígena quando se vive na cidade.

Ambas defenderam recentemente seus trabalhos finais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Taís defendeu o trabalho de conclusão de graduação no curso de Design Visual, com o título: "Indígena é indígena em qualquer lugar. Design Ativista para a Resistência Indígena em Contexto Urbano". Já Elis defendeu sua dissertação de mestrado no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFRGS, sendo a primeira indígena pesquisadora a concluir o mestrado neste programa.  

Na avaliação de Elis Alberta Ribeiro dos Santos, indígena Mura e mestra em Antropologia Social pela UFRGS, a inserção de indígenas nas universidades ainda é muito recente e são pouquíssimas vagas oferecidas, sendo que nem todos os cursos oferecem vagas para indígenas. “Precisamos continuar lutando e ocupando esses espaços, para que nós possamos tecer nossas próprias epistemologias, contar nossas histórias e promover nossos saberes ancestrais e tradicionais dentro e fora dos territórios acadêmicos, sem perseguição”, aponta 

Sobre ser mulher indígena em contexto urbano, elas destacam as políticas etnocidas do Estado. “Um tempo atrás um censor bateu para pesquisa em minha casa e perguntou a minha cor, eu disse indígena e ele perguntou se eu tinha registro na Funai, fiquei constrangida na hora, nunca mais toquei no assunto quando me era pedido e guardei isso dentro de mim”, relata Taís. 

“Ocupando esses espaços também combatemos projetos e leis que querem nos extinguir enquanto diferentes povos originários. Somos indígenas independente se estamos na cidade, isolados e/ou aldeados”, afirma Elis.

Abaixo, a entrevista completa:

Brasil de Fato RS - Gostaria que falasse um pouco sobre tua história, trajetória?

Taís - Sou Taís Aline Baptista Salomão, tenho 41 anos, venho de um contexto de baixa renda, no dia 26 de maio de 2021 apresentei meu trabalho de conclusão de graduação no curso de Design Visual na UFRGS com o título: Indígena é indígena em qualquer lugar. Design Ativista para a Resistência Indígena em Contexto Urbano.

Nasci em Esteio, mas cresci e vivi toda minha vida em Porto Alegre, em um contexto de baixa renda, não cheguei a morar na periferia, mas o aluguel já foi 70% da renda familiar. Estudei minha vida toda em escola pública. Quando saí do ensino médio prestei vestibular na UFRGS para jornalismo, não atingi a pontuação mínima em matemática, isso foi em 1998. Fiquei sem atividade e não conseguia emprego, até que comecei a trabalhar como auxiliar de restaurante na Puras Alimentação, onde servia a carne do buffet para os funcionários do Bourbon Ipiranga, que a recém tinha sido inaugurado. Depois trabalhei na Pizza Hut e outros restaurantes. 

Em outubro de 2001, junto com o nascimento da minha irmã, comecei a trabalhar no Mega Bingo. O nascimento dela trouxe novos questionamento para mim e o meu futuro, como incentivar ou cobrar que ela estudasse se eu não fazia o mesmo. 

Passaram três anos e uma colega que sabia que eu queria estudar falou que tinha uma faculdade que era mais acessível e que estava com o vestibular aberto, e fomos nós duas prestar o vestibular, passamos em ciências contábeis na FAPA (Faculdade Porto-Alegrense). Nesse mesmo ano os bingos foram fechados e comecei o estágio na área da contabilidade. 

No final dos anos 10, minha mãe estava morando na Lomba do Pinheiro, ela me chamou para conversar e disse que precisava que eu ajudasse alugar um apartamento próximo de uma escola, pois a minha irmã, com 7 anos na época, estava indo sozinha para a aula, que era longe, e ela ia a pé, eu estava morando com o meu avô na época. Então parei os meus estudos para que a minha irmã tivesse segurança. Só que eu não queria parar de estudar, tinha pego gosto pelo estudo, então apostei todas minhas forças no Enem, tive uma boa nota no Prouni e resolvi investir em um curso que eu me identificasse. 

No primeiro semestre fiz uns cursos para ver se eu descobria o que seria e no contato com a programação descobri que eu queria trabalhar fazendo layouts de sites. Pesquisei um pouco mais e vi que o curso de Design me possibilitaria isso, fiz o Prouni para a Feevale (a única que tinha uma cadeira de design de interface), entrei no Design e foi mágico. Só que com o passar do tempo o custo da passagem era muito alto e eu já não estava conseguindo manter, foi então que vi o extravestibular da UFRGS e cheguei onde cheguei hoje. Estou me formando, trabalhando no que eu sempre quis e lutando pelo o que eu acredito.

Elis - Pertenço a etnia Mura do Médio Amazonas, às margens do Rio Urubu, no município de Itacoatiara (AM). Meus avós paternos se deslocaram para cidade de Manaus, com seus quatro filhos/as, como dizia meu pai, hoje falecido, a fim de melhorarem de vida, deixando para trás nossos territórios de origem e, consequentemente, nossa cultura Mura que também lhes foi negada. Minha mãe, nascida em Parintins (AM) foi para Manaus, com 14 anos de idade, numa viagem de barco, que na época durava em torno de três dias, também de ancestralidade indígena. Porém minha família materna sofreu com os impactos dos processos coloniais de miscigenação da cultura branca com a indígena, esquecendo às origens da minha bisavó, no qual, tenho buscado acordar essa parte de nossa história. 

Cresci em uma região periférica da cidade de Manaus, bairro Zumbi dos Palmares II, no qual, ocupamos correndo risco de ataques e violências. Sempre fomos muito envolvidos/as em movimentos sociais. Mamãe nos dizia que a luta dos nossos direitos se faz com uma bandeira nas costas e com opções políticas de enfrentamentos aos projetos que desejam nos extinguir. E assim cresci, envolvida também por uma fé em um Deus libertador, propagada pela Teologia da Libertação, que embasava as comunidades eclesiais de base da Igreja Católica na periferia, promovendo ações concretas de enfrentamentos as políticas genocidas do Estado.

Por esses envolvimentos me tornei religiosa, uma indígena freira. Esse foi o motivo pelo qual vim parar no Rio Grande do Sul. Aqui me deparei fortemente com uma cultura branca que fez com que eu buscasse com mais força minha ancestralidade indígena, com orgulho de dizer quem eu sou e de onde vim. Sou Cristã, não porque compactuo com os projetos coloniais promovidos pela Igreja Católica, e mais recentemente com os crimes que foram descobertos no Canadá, mas porque acredito no projeto de Jesus Cristo que foi subalternizado e assassinado pela defesa de pessoas que eram totalmente excluídas e violentadas em seu tempo. Infelizmente esse Jesus não foi compreendido e nem propagado por “cristãos” que diziam ser seus seguidores e que inclusive ajudaram a subalternizar e eliminar pessoas ao longo da história. 

Acredito e luto pela libertação da Igreja, para que não somente faça uma reparação histórica, mas para que continue (muitos movimentos já realizam, inclusive as pastorais sociais) com ações concretas que promovam a dignidade de vida de todos os povos.   

Pela história que carrego, sinto-me grata à nossa Congregação, Irmãs da Divina Providência, que me ajudou a fazer esse caminho de volta, e ao Centro Indígena-Afro do RS que me acolheu na comunidade multiétnica, onde me sinto fortalecida e parte da luta promovida pela cacica, Alice Guarani, e todas as parentas e parentes que estão ali lidando diariamente com as lutas, para que possamos existir dentro da cidade, onde sofremos ataques promovidos até mesmo por outros/as parentes/as indígenas que tentam deslegitimar a identidade dos nossos ancestrais, por sermos de diferentes etnias e já nascermos dentro dos contextos urbanos. Precisamos compreender que nossa bandeira de luta é a mesma, lutamos para que todos/as nós possamos existir, isso precisa nos mover.

No entanto, além de projetos ligados à congregação, tenho me juntado à luta do Centro Indígena-Afro do RS, faço parte do coletivo de mulheres Mura da Amazônia, da rede ancestral Wayrakunas Brasil e da comissão científica do encontro Nacional de Estudantes Indígenas. Nossos corpos são políticos e primam por justiça, por esse motivo, diferentes espaços devemos e precisamos ocupar.

Na verdade, bem na verdade, eu acredito que tenhamos que trabalhar primeiro nessa identidade perdida e apagada nos indígenas urbanos, reviver esse sentimento de identidade e representatividade, ampliar para mais pessoas verem que existimos.

BdFRS - Também gostaríamos que falasse sobre o teu trabalho acadêmico, o que te motivou a abordar o tema

Taís- A pesquisa se iniciou com um levantamento de intervenções urbanas em Porto Alegre, quando tive contato com o trabalho do Xadalu. Comecei os estudos sobre a questão indígena em Porto Alegre, o assunto me chamou a atenção por eu ter a ascendência indígena, minha mãe sempre me passou orgulho em ter no sangue e os traços presentes em mim. 

Sabendo do meu interesse no tema, um amigo me enviou o quadrinho entrevista do Pablito Aguiar com a cacica Alice Guarani, onde ela contava todas as lutas e dificuldades de ser uma indígena em contexto urbano, o que me impactou e ficou me cutucando, o desconhecimento da comunidade, pela situação e por ser tão próximo de mim. Então, uma semana antes de entregar o painel intermediário mudei o rumo do meu TCC. Busquei o contato da Alice nas redes sociais e perguntei se poderia abordar o tema, daí começou o meu contato com a Alice e o Centro de Referência Indígena-Afro do RS.

Elis - Sou uma indígena que já nasceu e cresceu dentro do contexto urbano. Senti na pele as políticas etnocidas do Estado brasileiro que tentou apagar nossas identidades, de modo que assimilássemos a cultura branca e nos integrássemos a sociedade nacional envolvente. A cidade de Manaus, capital do estado do Amazonas, onde nasci, sofreu e ainda sofre fortemente com os impactos coloniais, isso levou a maioria dos manauaras a esquecer e negar nossas próprias raízes indígenas. 

Acredito que o fato de estar em processo de retomada de minhas origens, roubadas pela colonização, me tornou muito mais envolvida não somente pelo tema dissertativo que me propus a pesquisar, mas pela situação do povo Warao, que vem desenvolvendo ciclos de deslocamentos forçados desde a década de 1960, primeiramente para contextos urbanos da Venezuela e atualmente para e pelo Brasil. Esses deslocamentos se dão justamente pelo fato de o governo venezuelano implantar vários projetos de desenvolvimento econômico na região do Delta do Rio Orinoco, nordeste da Venezuela, território de origem do povo Warao, que afetou tragicamente seus modos de vida. Organizados culturalmente e economicamente em um território situado às margens do rio e rodeado do verde da floresta, foram prejudicados por construções de barragens, exploração de petróleo e ainda com a epidemia da cólera, muitos Warao morreram, os que conseguiram sobreviver começaram a procurar outros meios para práticas de reprodução de vida. O último deslocamento se deu pela crise econômica e política da Venezuela, que levou os Warao a atravessarem às fronteiras para o Brasil. 

Aqui os parentes vêm sofrendo com falta de políticas públicas de atendimento às especificidades no que se refere a cultura indígena e das próprias políticas enquanto povo migrante e refugiado, passando por sérias situações de violências. Há muito que ser enfrentado pelos Warao no Brasil, nesse sentido, a partir dos enfrentamentos sociais e políticos que os Warao vêm enfrentando na cidade de Manaus, o tecido epistêmico de produção indígena que desenvolvi durante o mestrado primou em analisar os impactos e transformações que este grupo étnico vem passando, principalmente nos contextos urbanos, onde desenvolvem práticas de reprodução da vida adaptativas de acordo com sua organização tradicional. As instituições que acompanham os Warao têm buscado soluções junto aos Warao para os problemas, no entanto, a vulnerabilidade que passam os/as indígenas, principalmente pela violação dos seus direitos humanos como indígenas, refugiados e migrantes, tem ocasionado os constantes deslocamentos pelas regiões brasileiras.

É uma situação desafiadora tanto para o povo Warao como para essas instituições, pois o atual governo ataca de forma violenta os povos originários, criando estratégicas políticas para nos extinguir apoiado por uma bancada ruralista e por grandes fazendeiros e latifundiários que estão matando nossos corpos e territórios. Portanto, lutamos para continuar existindo seja nas aldeias ancestrais, seja em qualquer cidade e/ou país. Por isso, é extremamente importante que os Warao participem das discussões e formulações de projetos que garantam sua permanência digna no Brasil, para que sejam protagonistas e participem efetivamente desses processos que envolvem suas pautas, para além de refugiados, são indígenas e precisam ser reconhecidos, atendidos e valorizados de acordo com suas especificidades étnicas. 


Taís com a cacica Alice Guarani / Arquivo Pessoal

BdFRS - Como tu analisa o acesso do povo indígena à educação, avanços, retrocessos? O que precisa ser feito?

Taís - Eu entrei na UFRGS pelo extravestibular, pois antes estudava Design pelo Prouni na Universidade Feevale. O que eu acredito que possibilitou o meu acesso à universidade pública. No meu curso poucos são os pretos e pardos que não devem fechar mais que uma mão, e de indígena só eu mesma. 

Acho que além do acesso ser difícil, o ambiente é muito hostil. Como já tinha lá meus 35 anos, aguentei, mas acho que a Taís com 18 anos de idade não aguentaria. É muita pressão social e pressão financeira, seja pelos horários e valores das bolsa. No meu curso precisava fazer uma cadeira x para ser liberado para o estágio de 6 horas, fui pedir para o coordenador do curso a liberação pois eu ganharia mais R$ 200,00 por mês, ele disse que eu poderia esperar o próximo semestre, afinal eram só R$ 200,00. As humilhações constantes lembrando que aquele lugar não era pra ti e os contrastes sociais tremendo. Além de professores que pedem trabalho para um público de baixa renda e desconhecem a realidade, tratam com leviandade o assunto, aprovando produtos que passariam longe de qualquer carrinho de quem já deixou de comer no RU por causa de R$ 0,05. A Universidade Pública de acesso universal é uma falácia e se é um curso de tecnologia então, você realmente está no lugar errado.

Sobre o que precisa ser feito... primeiro conseguir que esses jovens, principalmente os periféricos, consigam concluir o ensino médio com qualidade, as cotas para indígenas urbanos não existem, só o Sisu permite a autodeclaração. Na verdade, bem na verdade, eu acredito que tenhamos que trabalhar primeiro nessa identidade perdida e apagada nos indígenas urbanos, reviver esse sentimento de identidade e representatividade, ampliar para mais pessoas verem que existimos, possivelmente poucos entraram na luta, mas com certeza engrossaram a voz. Que a retomada do que é nosso se faz por mais portas, começando pelo o espaço em si.

Elis - Há exatamente um mês que defendi minha dissertação de mestrado no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), como a primeira indígena pesquisadora a concluir o mestrado neste Programa. Ao mesmo tempo que me senti feliz pela possibilidade de abrir um novo ciclo quanto a nossa inserção no território acadêmico, senti muito por ser a primeira de um Programa que tem mais de 40 anos de história. No entanto, sou grata, por conseguir concluir uma etapa dos meus estudos em uma universidade pública e por contar com um orientador, prof. Dr. Pablo Quintero, que foi muito presente nessa construção.

Ressalto a importância de optar pela Antropologia, extremamente importante para nossas pautas indígenas, pois servimos anos de objetos de estudos para antropólogos brancos, no qual muitos legitimaram os projetos coloniais e nossa incapacidade de sermos sujeitos de nossas próprias vidas e histórias. Por isso e por tantos ataques que temos enfrentado, enquanto indígenas, me sinto, cada vez mais, desafiada e comprometida para que mais parentes possam ocupar esses espaços que foram historicamente negados a nós. 

A inserção de indígenas nas universidades ainda é muito recente e são pouquíssimas vagas oferecidas, sendo que nem todos os cursos oferecem vagas para indígenas. Nesse sentido, precisamos continuar lutando e ocupando esses espaços para que nós possamos tecer nossas próprias epistemologias, contar nossas histórias e promover nossos saberes ancestrais e tradicionais dentro e fora dos territórios acadêmicos, sem perseguição. De objetos pesquisados passamos a ser sujeitos de nossas próprias pesquisas, nos inteirando das leis e políticas que regem esse país para lutarmos pelos nossos direitos enquanto povos originários. 

A academia é também território indígena! A inserção de indígenas nesses espaços tem promovido desestabilizações epistêmicas e metodológicas importantes para a academia, promovendo novas formas de fazer ciência, rompendo com a ciência ocidental que embasou os projetos coloniais. A luta continua para que tanto indígenas que estão em aldeias como os indígenas que estão em contextos urbanos possam existir e para que nossos territórios deixem de ser invadidos e nossas terras deixem de ser privatizadas. 

Para isso, é importante sempre juntamos forças, enquanto estudantes e pesquisadores/as indígenas. Vale o convite para o encontro Nacional de Estudantes Indígenas (ENEI) que está previsto para acontecer em 2022 na UNICAMP/SP e o pré-evento virtual acontecerá agora dos dias 28 a 30 de julho. Não ao PL 490! Não ao Marco Temporal! Vidas Indígenas importam!

Acontece que as políticas brasileiras não reconhecem indígenas que estão nos contextos urbanos, não existe leis que nos ampare e muitas instituições que trabalham com os povos originários chamados brasileiros legitimam essa posição estatal, desfavorecendo a luta pelos nossos direitos tradicionais simplesmente pelo fato de estarmos na cidade, sendo que foi a cidade que chegou na aldeia. 


BdFRS - Fale sobre o ser indígena no contexto urbano.

Taís - Isso sempre me permeou, era algo que eu não sabia nomear, mas eu não me sentia representada por ninguém. Como tenho uma altura baixa, cabelos liso e olhos puxados, mas com a pele mais branca e a boca pequena, desde a minha infância isso gerou uma curiosidade no outro em saber o que eu era, me confundiram com as asiáticas, apelidos como japa, arigatô, sayonara e Pikachu sempre apareciam. Por mais que explicasse minha ascendência, mesmo assim muitos não acreditam, ainda perguntam meu sobrenome e como eram os meus pais, digo que minha mãe tem os traços indígenas mais forte e o seu pai ainda mais. Nada disso basta, parece que meu orgulho incomoda (e hoje sei que incomoda). 

Um tempo atrás um censor bateu para pesquisa em minha casa e perguntou a minha cor, eu disse indígena e ele perguntou se eu tinha registro na Funai, fiquei constrangida na hora, nunca mais toquei no assunto quando me era pedido e guardei isso dentro de mim. A minha ficha caiu quando encontrei a Alice e conversamos, naquele momento pela primeira vez eu me senti vista, que eu poderia ser quem eu era de verdade, aquilo que tanto gritava dentro de mim. Quando a Alice me viu como igual e me acolheu com suas palavras, eu chorei, chorei muito, foi um sentimento único de aceitação e finalmente de uma identidade encontrada. 

O estado nos nega a identidade, o colonialismo faz com que a maioria tenha vergonha de se reconhecer e os poucos que ainda tentam cobram um documento que ateste, mas há 521 anos queria saber qual foi o documento que os invasores receberam para ter certeza que aquelas pessoas realmente eram indígenas. Mas não se resume a uma característica física, apesar de a representatividade ser muito importante, existe um sentimento de coletivismo, de respeito e acolhimento ao próximo, algo de poder estar apenas ali sem um interesse, em prol de um bem coletivo, um reconhecimento que muitos viveram para que possamos deixar as nossas marcas depois que passarmos por aqui.

Elis - Sou indígena mulher urbana. Meu clã familiar na cidade vivenciou as consequências dos deslocamentos forçados de nossos antepassados dos territórios de origem. Chegar à cidade significava para meu pai, hoje falecido, possibilidades para “superar o que estava ruim”.

Na cidade não desejamos somente "sobreviver", almejamos e lutamos para viver, para sermos respeitados como gente. Moramos em palafitas, mas essa situação precarizada nos motivou a ocupar um outro espaço. A periferia que nasci se tornou lugar de luta e resistência. E minha mãe foi uma grande liderança na luta pela libertação de nossos corpos e para que tivéssemos direito à terra, à educação e à saúde.

Acontece que as políticas brasileiras não reconhecem indígenas que estão nos contextos urbanos, não existe leis que nos ampare e muitas instituições que trabalham com os povos originários chamados brasileiros legitimam essa posição estatal, desfavorecendo a luta pelos nossos direitos tradicionais simplesmente pelo fato de estarmos na cidade, sendo que foi a cidade que chegou na aldeia. Todo o Brasil é território ancestral indígena.

A marca colonial é nitidamente explicitada na construção das cidades. Estas, por sua vez, foram construídas como invasoras das terras ocupadas pelos povos originários, erguidas a partir da despossessão desses territórios, e consolidaram-se o externo por meio da penetração violenta, que não estava disposta a conversar, mas impor sua presença.

Problematizar essas categorias em torno da construção da cidade, como espaço de exploração dos corpos indígenas e negros, é necessário para compreendermos como o “viver bem” foi depredando o “bem viver”, deixando os povos indígenas desapropriados de suas terras. Por isso legalizar o “marco temporal” é totalmente uma violação aos nossos direitos ancestrais.

A cidade elevou-se, no sentido simbólico dominante, ao lugar privilegiado de distanciamento da natureza, ao lugar da “civilização”, ao lugar do “sucesso”, do “moderno”, à materialização do “progresso” e do “desenvolvimento”. A cidade identificou-se com o distanciamento do indígena, ou seja, “as cidades, são o coração da reprodução dos modos de vidas dominantes, coloniais, modernos, capitalistas”, como diz o educador boliviano Mario Rodríguez Ibáñez.

Aqui entram muitos desafios que precisamos enfrentar por estarmos no contexto urbano, sendo que a partir do momento que nos deslocamos ou já nascemos dentro desse território, as nossas pautas de resistência são para não sermos engolidas por esse sistema, pelas políticas etnocidas do Estado. Também é pelos parentes que estão nas aldeias de origem, pois ocupando esses espaços também combatemos projetos e leis que querem nos extinguir enquanto diferentes povos originários. Somos indígenas independente se estamos na cidade, isolados e/ou aldeados.


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Edição: Marcelo Ferreira