Pernambuco

MÚSICA

Artigo | Deixa o menino cantar

O sucesso de agora no TikTok e no Reels do Instagram é a semente dos vaqueiros, dos poetas analfabetos do sertão

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Nas recentes entrevistas João afirma ter como referências musicais Kara Veia, Cartola e Belchior - Lucas Facundo

Um matuto contemporâneo. Um menino de 18 anos que conseguiu identificar o tempo da cultura hegemônica ao tornar palatável suas composições que traduzem a essência de um sertanejo rural. E ele afirma em sua música preferida “Eu quero ser um véi que nem vovô. E viver por amor a vaquejada. Já deixei minha senha preparada que eu vou botar na boiada do jeito que ele ensinou”. João Gomes surge como um fenômeno na música brasileira ao trazer suas raízes sertanejas do sertão original no jeito de pensar em fazer música. 

Nas recentes entrevistas João afirma ter como referências musicais Kara Veia, Cartola e Belchior. Identifica-se também que as suas composições iniciais se deram no Rap. Olha o naipe do menino do sertão. É potente e sabe disso. Chega metendo o pé na porta e diz pra todo mundo “Eu tenho a senha pra correr em todo canto a humildade e disciplina dos sermões que mãe me deu. Eu tenho a senha e meu cavalo já tá pronto e em cima da cela eu mostro que mereço meu troféu”. 

João é um prodígio e chega grandão no mercado cultural que apequena os gigantes que carregam a cultura popular na essência. Explode a partir de “Anh, Anh, Ahn” um jargão completamente descolado, sem nexo algum. Mas que marca e gera sentidos múltiplos pra quem escuta. Quem conhece a vivência do sertão rural sabe dos jeitos e trejeitos singulares de figuras sertanejas que marcam na sociabilidade. E eu acho isso magnífico. Só que essa é apenas uma parte pequena de todo potencial de João. Me espanta e me alegra o fato dele saber disso. Em entrevista afirma “Eu sei que a galera gostou do ‘Anh Anh Anh’, mas como escritor eu gosto muito da poesia”. João é brabo!

Geralmente são essas partes pequenas e rapidamente lucrativas que o mercado cultural se estrutura. Impõe uma caixa pequena por possuir como estratégia um projeto burro que controla e limita a cultura popular. Me causa tamanha esperança esse movimento do Pisêro que ganha o cenário nacional ao ressignificar-se atual com o forró, baião, sertanejo, brega e um tanto de variações musicais. Ressignifica-se, pois o Pisêro não surge agora. Há muito tempo a gente na zona rural do sertão já frequentava os Pisêro. O centro urbano é  que demorou pra saber aquilo que era bom (ou o mercado cultural segurou até quando deu, né?) 

Atualmente, além de João, Os Barões da Pisadinha, Zé Vaqueiro, Tarcísio do Acordeon, Vitor Fernandes e uma renca estão metendo dança e fazendo bonito. Com muita ousadia, podemos pensar o Pisêro como parte de uma exaltação musical para o Nordeste assim como foi o movimento do Axé para a Bahia. Talvez possa ser mais desejo do que realidade concreta. Certeza é que, por mais hegemônico que seja, o mercado cultural se curva diante da exuberância da cultura popular por não conseguir apagá-la. 

João é prova e sabe disso por citar até Os Nonatos: “É essencial manter a essência. Mesmo com arte, o artificial não destrói o brilho do que é natural”. O sucesso de agora no TikTok e no Reels do Instagram é a semente dos vaqueiros, dos poetas analfabetos do sertão, de Luiz Gonzaga, Kara Veia, Belchior, Cartola e tantos outros. A gente quer ver o menino cantar. Deixem o menino cantar o sertão do jeito que ele é. Deixem livre essa potência toda de um matuto contemporâneo que só tem 18 anos.

*Santiago Matos é sertanejo, Mestre em Extensão Rural e Desenvolvimento Local pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens

Edição: Vanessa Gonzaga