Paraíba

HIP HOP

Emicida e a arte que interpreta o Brasil

Emicida tem sido um dos artistas brasileiros que melhor vem lendo a complexa realidade brasileira

Campina Grande-PB |
Show do Emicida na Feira Nacional da Reforma Agrária, São Paulo, 2017 - Reprodução

Nos dias atuais, o sentimento de esperança parece sumir e a garganta vive um intenso apertar de uma mão que aparenta ser invisível e que parece tirar cada segunda de vida que nós temos. Porém, existem pequenas alegrias da vida adulta, dentro desta volatilidade da vida e da morte por que passamos, que nos fazem acreditar na continuidade. Essas pequenas alegrias podem ser desde um boleto pago, um ato de solidariedade visto nas ruas ou até mesmo o show de um dos seus artistas favoritos que está disponível nos serviços de streaming… Sim, esse texto é sobre o AmarElo, de Emicida.

Era final de 2019, Emicida lançava o principal disco de sua carreira, intitulado AmarElo. Não é apenas um disco, mas, de acordo com as próprias palavras do Emicida, “um experimento social”. Alerto o leitor de que, em nenhum momento, estou desconsiderando as outras obras que constituíram o Emicida até aqui, desde “Triunfo” (2005), passando por “Cidadão”, do grandioso disco Pra Quem Já Mordeu um Cachorro Por Comida, Até que Eu Cheguei Longe (2009) e da qual nunca vou esquecer as linhas: 

As pessoas se esbarra, se olha, se cala. Não pede ou cobra desculpa, porque ninguém mais se fala mermo. 

O mesmo posso falar para o gigantesco Emicidio (2010): quantas vezes “Eu gosto Dela” embalou os romances de uma geração inteira? E eu nem falo do impacto sonoro do disco Doozicabraba e a Revolução Silenciosa (2012) e da track 6, intitulada “Zica, Vai Lá”… Em 2013, o rapper Criolo, junto com Emicida, lança um disco ao vivo do qual destaco a primeira música interpretada, a clássica apresentação de “Vida Loka Parte 1” entre Mano Brown, Emicida e Criolo. Em O Glorioso Retorno De Quem Nunca Esteve Aqui (2013), Emicida nos traz canções como “Levanta e Anda”, “Crisântemo” e “Hoje Cedo”, músicas essas que marcaram vidas e trajetórias de muitos brasileiros e das quais tenho certeza de que, ainda hoje, salvam várias vidas no Brasil real. 

Já em 2015, vem aos nossos ouvidos o belo Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, com músicas gigantescas como: “Mãe” (com participação de Dona Jacira e Anna Tréa), “Mandume” (com Drik Barbosa, Amiri, Rico Dalasam, Muzzike e Raphão Alaaphin), “Baiana” (com Caetano Veloso), “Passarinhos’ (participação de Vanessa da Mata), “Casa”, “8” e “Trabalhadores do Brasil”. Vale o destaque de que todas essas produções, assim como o DVD 10 anos de Triunfo (2018), foram produzidos pela gravadora independente Lab Fantasma, que surgiu em 2008. 

A referência do nome AmarElo é retirada de uma poesia do Paulo Leminsk: "Amar é um elo / entre o azul / e o amarelo". É fruto de uma conjuntura histórica de crise econômica, social, sanitária e humanitária e do consequente amadurecimento do Emicida enquanto artista. A obra chegou aos nossos ouvidos como uma anunciação: ou repensamos a nossa relação com as pessoas e com o mundo ou seremos engolidos por essas próprias pessoas e pelo mundo. 

O disco é repleto de participações de grandes figuras brasileiras: Belchior, Dona Odete, Pablo Vittar, Majur, Marcos Valle, Pastor Henrique Vieira, Zeca Pagodinho e Fernanda Montenegro. Um verdadeiro suco de um Brasil que deu muito certo. Só para que tenhamos uma ideia, o vídeo da canção intitulada “AmarElo”, que tem as participações da Pablo Vittar e da Majur, alcançou 1 milhão de visualizações nas primeiras 48 horas.
    
Porém, não satisfeito com o impacto positivo que o seu disco teve, Emicida decidiu aprofundar sua análise quando lança o documentário, em parceria com a Netflix, AmarElo - É Tudo Pra Ontem. Trata-se de um esforço de explicar a História do Brasil através de eixos temáticos estruturados em pontos que são fundantes da nossa formação social: escravidão, invisibilização da cultura afro-ameríndia, industrialização do sudeste brasileiro e o consequente surgimento de uma classe trabalhadora organizada, ditadura militar, cultura Hip Hop e uma nova perspectiva de escrita de história, uma história vista pelos de baixo e escrita a contrapelo.  

Falo, com tranquilidade, que Emicida tem sido um dos artistas brasileiros que melhor vem lendo a complexa realidade brasileira. Emicida, hoje, é um dos principais interlocutores das demandas da classe trabalhadora brasileira. O documentário do AmarElo é um documento histórico que faz parte do processo da reescrita da História Brasileira.
    
O local escolhido por Emicida para ser gravado o show do disco AmarElo foi o Teatro Municipal de São Paulo, local que, em 1978, foi palco de uma manifestação do Movimento Negro Unificado. Naquele ano, aconteceram dois fatos que trouxeram muita repercussão. O primeiro foi quando quatro garotos negros do time de Voleibol do Tietê foram espancados por forças policiais só por serem negros. Um outro caso, que foi um dos estopins, é o de um homem negro que foi torturado e assassinado por policiais militares pelo suposto crime de roubo de fruta em uma feira. Diante disso, militantes do MNU marcharam da Avenida da Consolação com a rua Visconde de Ouro Preto, indo direto para as escadarias do Teatro Municipal. O show é uma viagem à história do Brasil e, consequentemente, da vida do artista que ali se apresenta. Ao realizar o evento no mesmo Teatro onde, 43 anos atrás, o Movimento Negro Unificado denunciava uma opressão secular, Emicida escrevia um novo capítulo da história do povo brasileiro. 

Emicida é um artista que escreve a história brasileira escovando-a a contrapelo. Sempre lembro de alguém que um dia me falou que os artistas, geralmente, são as antenas da realidade. A arte de Emicida vem para sintonizar de uma maneira mais lúcida, respeitosa e solidária a nossa relação com as pessoas e com o mundo. 
 

Edição: Heloisa de Sousa