Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | O guri e o cosmonauta

Em julho de 1961, em pleno Planalto Central, a história do guri que encontra o seu herói Yuri Alexeiévitc Gágarin

Brasil de Fato | Porto Alegre |
No dia 12 de abril de 1961, o mundo ficava maravilhado com o feito da extinta União Soviética ao enviar para o espaço o primeiro ser humano, Yuri Gagarin - Reprodução

Numa paisagem desolada de terra vermelha e escassos prédios de madeira, assolada por uma multidão que bramava mais que cem elefantes enfurecidos, o guri, nove anos, de camiseta listrada, calções e tênis “Conga” azuis, duro como uma estátua, mudo como um peixe, e com olhos muito arregalados, via desembarcar de um auto preto e enorme, o maior herói de todos os tempos, e esse herói era baixinho, de olhos muito azuis, e vestia-se imaculadamente de branco.

Isso aconteceu em julho de 1961, em pleno Planalto Central, numa urbe ainda meio acampamento que se chamava Brasília, e o herói do guri se chamava Yuri Alexeiévitch Gágarin, que três meses antes fora o primeiro humano a andar pelo espaço. Era, além disso, um herói soviético – e o guri achava que entendia o que queria dizer herói soviético! – que dissera que a Terra era azul e que no céu por onde andara não havia Deus.

Na memória do guri os últimos acontecimentos giravam como num redemoinho, tudo parecia inacreditável. O guri vinha de longe, da Vacaria dos Pinhais, nos Campos de Cima da Serra lá na estremadura do Rio Grande do Sul, onde em julho geava grande e até nevava. Férias escolares, e a “Kombi” lotada para uma viagem que hoje seria folclórica: o pai, a mãe, o guri, o irmão menor, a irmãzinha de colo, a avó materna, a tia, pela velha BR-2 cruzando quatro estados até a Guanabara, onde se incorporou à trupe o avô paterno, que já há alguns anos fugira dos invernos serranos e vivia nas plácidas areias de Copacabana.

O guri pouco aproveitara da viagem, vomitando mais que mulher grávida, o que se repetiria no caminho para as Gerais e daí para a capital recém-criada. Mais que isso, era um tempo perdido, tempo de jogar futebol em campinho, experimentar bodoques ou flechas com ponta de osso, campeireadas nas fazendas dos tios, ou ir a matinês de domingo num dos dois cinemas da cidade, para torcer freneticamente pelos “mocinhos” americanos que sempre espancavam índios, alemães e japoneses.

Brasília empolgou um pouco pelo inusitado: o Plano-Piloto, as meias-esferas do Congresso, o Palácio do Planalto, o Palácio da Alvorada que abria para visitação pública com uma banda que “tocava” a Marcha Eslava, nos últimos dias do soturno Jânio Quadros (No ano anterior, o guri usara com garbo uma “espadinha” do Marechal Lott na lapela do avental da escola).

Mas a viagem semiaborrecida adquiriu um brilho inesquecível. Naquele dia – qual mesmo? – chegaria o herói, e o guri sabia tudo dele. Sabia, aliás, tudo da corrida espacial, dos Sputniks, da cadelinha Laika, do voo da Vostok. Sabia também que os “mocinhos” do cinema eram os “vilões” do mundo real, onde torcia para os soviéticos e, mais recentemente, para uns atrevidos barbudos cubanos. Tudo culpa do pai, comunista da melhor cepa, e de uma revista chamada Unión Soviética, onde o guri tratava de decifrar uma língua que parecia português, mas não era!

O 12 de abril tinha sido uma festa na casa do guri, e na revista tinha tudo sobre o herói: vinte e sete anos, casado com Valentina, pai de Ielena e Gálina, filho de um trabalhador de kolkhoz, promovido a major, Ordem de Lenin (o pai explicara o que era a tal “ordem” e quem era Lenin), e o guri fizera uma “composição” na escola sobre o voo de Gágarin, digno da melhor nota na 4ª série. E desprezara o “feito” de Allan Shepard em 5 de maio, ridícula resposta americana à viagem orbital do herói. Daí que a notícia, em meio a um insosso almoço, de que Gágarin faria uma parada em Brasília, trouxe para os viajantes da “Kombi” um alvoroço sem precedentes.

Todo mundo no “campo de aviação”, não muito diferente daquele da pequena cidade de onde vinha o guri. Diferente, sim, a multidão, o cordão de isolamento pelos soldados da Aeronáutica, a sensação de perigo de um rodeio de boiada xucra, coisa que o guri já tinha visto. E chegou o “Ilyutchin” da Aeroflot – o guri conhecia os aviões soviéticos, “Ilyutchins”, “Tupolevs”, “Migs” e outros que tais – brilhando ao sol e levantando a polvadeira vermelha da pista de pouso. E daí a boiada humana estourou, a família desapareceu na correria, e o pânico já tomava conta do guri quando a mão firme da tia agarrou-o, enquanto dizia: “– Vem, vamos pelo outro lado!” Fazendo um rodeio, chegaram à frente de uma espécie de chalé de madeira – depois o guri soube que aquilo era o cassino dos oficiais da Aeronáutica – onde aguardaram, longe da multidão que estava novamente rodeada pelo cordão de soldados, a chegada do auto preto. Dele desceu o herói baixinho, de olhos muito azuis, e vestido imaculadamente de branco, e foi-se aproximando. Disse a denodada tia: “ – Vai lá, cumprimenta ele!” Automático, o guri estendeu a mão, que o cosmonauta apertou, dando uma sonora gargalhada, entrando depois no cassino.

Parecia que tudo estava feito, mas tinha mais. A indomável tia irrompeu pelo recinto arrastando o aparvalhado guri até onde repousava o herói num sofá, cercado de gente fardada, dizendo: “ – Olha bem para ele, este é o homem que irá para a Lua!” E insistia, com um tipo em trajes civis, que falava um português arrevesado, por um autógrafo de Gágarin. Então o cidadão alcançou-lhe uma foto, firmada pelo herói, falando no seu jeito estranho: o “ – Toma, é para o menino!” E o guri saiu do cassino com a foto e assinatura do cosmonauta, sem saber muito no que pensar e menos ainda fazer. Ele vira, cumprimentara e recebera uma recompensa inimaginável, e ele viera de longe, lá da província, e voltou, e o mundo nunca mais foi o mesmo, e o que acontecera parecia um sonho pare ele, ou mentira quando contava para os outros.

Depois aconteceram os périplos de German Stephanovitch Titov, Adrian Nicolaiev e Pável Popovitch, Valery Bikowski e Valentina Teréchkova, e de outros tantos soviéticos pelo espaço sideral... E teve a Legalidade, o Plebiscito e a Redentora de 64 no Brasil... E o major Yuri Alexeiévitch Gágarin, com Ordem de Lenin e tudo, morreria num acidente aéreo experimentando um protótipo “Mig”, é o que dizem... E os americanos acabaram chegando na Lua antes dos soviéticos, mas o guri já não era mais guri, e brigava com o pai criticando a União Soviética e achando a corrida espacial uma bobagem... E, num átimo, passaram-se quase quarenta anos, e a estação orbital "Mir" despencou no Oceano Pacífico, desintegrada em chuva meteórica como que encerrando uma era, último foguetório de um mundo que não existe mais, assistida apenas por uns poucos que devem ter pensado no fim dos tempos, talvez com razão... Quem sabe? Daí a rememorança desta história, do primeiro guri brasileiro que cumprimentou o primeiro cosmonauta! Mas isso é história, ou apenas a memória de um guri que não é mais guri? Penso que sim, que é história, porque tenho a foto autografada, sou historiador de ofício, e aquele guri era eu!

* Professor de História da UFRGS

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko