Minas Gerais

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Só as mães são felizes!

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Arquivo - EBC
Ele subiu no palco e cantou com a gente: Vida louca vida!

A vida não para. Bora para mais um show. Eu e minha banda. Era um seminário de gente inteligente, descolada ou, aparentemente, inteligente. Pessoas ricas que demonstram outra condição econômica e se denominam centro-esquerda. A chamada terceira via.  Cheguei com minha banda para passar o som, horas antes da apresentação, como é de praxe. Veio uma moça bem-educada e nos mostrou o local onde a banda tocaria. Era onde, neste momento, acontecia uma palestra. Então tínhamos que esperar a palestra acabar. E ficamos por ali de ouvintes. 

Estava em um momento difícil para sobreviver. Sabia que a vida era dura para ele

 

Como era o mês da consciência negra, o tema em questão era o empoderamento do povo negro e o combate ao racismo. O debate seguia frenético. Era só intervenção inteligente, com o uso de palavras difíceis. Com palavra de ordem contra a ordem. O debate estava pegando fogo.

A novidade

Em um determinado momento, apareceram dois meninos negros vendendo balas naquele auditório, dentro da universidade. Não sei como eles entraram ali. Mas, assim que notados, todos ficaram em silêncio. A vida real tinha invadido o cenário teatral da palestra. A tese do combate ao racismo foi reprovada pela banca da vida real.

“Oi! Como vocês entraram aqui? Isto é uma palestra. Vocês não podem ficar”. Um dos garotos olhou para o moço com o microfone na mão e disse: “Três por dois. Vai querer, moço?”. Foi um longo período de silêncio. Até que a moça educada veio falar com eles. Comprou as balas, agradeceu, pegou a bolsa e saiu do auditório. 

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Depois disso, o seminário não teve mais clima. Subi ao palco com a banda, e a música de abertura, por coincidência, era “A Novidade”, dos Paralamas, cujo refrão é assim: “Ó mundo tão desigual, tudo é tão desigual. De um lado esse carnaval, de outro a fome total...”.

Fui para meu segundo show do dia. Um barzinho muito legal aqui em Belo Horizonte. Desses lugares em que a entrada é muito cara. Eu mesmo só entro como músico. Eu não tenho nem dinheiro para entrar como consumidor. O lugar estava cheio. É final de ano. Festas das empresas. Amigos secretos. Presentes pra lá e pra cá. Também não sei como um moço negro entrou no lugar. Ele estava com roupas velhas e rasgadas. Entrou e avisou que um carro estava aberto. Acho que foi algum descuido da segurança. Nesses lugares, pedem até seu DNA para você entrar. Tipo sanguíneo e tudo mais. Foi também um espanto. As pessoas acharam que ele iria assaltar o lugar. Coitado do moço, só queria ajudar. Ele pediu algo para comer e beber. Seu pedido foi aceito. Ele tinha ajudado alguém avisando sobre o carro. 

Navio negreiro

Também chamei para cantar uma comigo. Dessa vez, foi a música do Rappa: Todo Camburão tem um pouco de Navio Negreiro. E o moço mandava bem. Ele empolgou, a música durou quase oito minutos. Ele ficou com a gente até o final do show. 

Contou um pouco da sua vida. Não é diferente da grande maioria. Estava desempregado. Era uma correria. Nunca fez mal para ninguém. Sofria discriminação no dia a dia da grande metrópole. Estava em um momento difícil para sobreviver. Sabia que a vida era dura para ele. Nos despedimos e desejamos boa sorte na sua caminhada. Eu ainda tinha um show em uma escola pública no dia seguinte. Logo pela manhã.

Amanheceu em Beagá. E já estávamos mais uma vez na estrada, prontos para tocar. Em um cenário completamente diferente. Primeiro, porque era de manhã. Geralmente, tocamos à noite. Segundo, porque a meninada não estava habituada a escutar rock. Muito menos rock nacional, como Paralamas, Legião, Cazuza, Engenheiros, Ira, Plebe Rude, dentre outras bandas. E a banda tem como ideologia deixar o palco livre para as pessoas. Quem quiser cantar com a gente é só chegar. Fiquei sabendo que um garoto queria cantar. E que ele gostava da Legião e dos Engenheiros do Havaí, Cazuza e Paralamas. 

Mas alguma coisa aconteceu. Reparei que o menino estava triste. Não estava mais a fim de cantar. Alguma coisa estava angustiando aquele garoto. Depois o diretor da escola contou o que estava acontecendo. O garoto estava cometendo pequenos furtos na escola. Descobriram que era ele, justamente naquela semana do show. Logo ele. Sempre tão bom aluno. 

E o diretor disse que ele queria trocar uma ideia comigo. Claro. Coloquei-me à disposição na hora. O garoto veio até sorridente. Dizendo que queria ser como eu. Fiquei super feliz. Ele disse que queria tocar e cantar como eu. E disse que me viu tocar na televisão.

Vida louca

Nosso papo continuou. Confessou-me que era ele mesmo que estava roubando a escola. Uma lágrima rolou no seu rosto. Fiquei meio sem saber o que fazer. O que dizer nessa hora? Aí eu perguntei: porque você começou a fazer isso? Ele disse que era porque queria ver a mãe. Ver a mãe? Não entendi. E ele afirmou que queria ver e ficar com a mãe. Então ele esclareceu que a mãe estava presa. 

Imediatamente, chamei o diretor e contei a história. Ele disse que iria averiguar a história do aluno e que tomaria todas as medidas possíveis para ajudar o garoto. Então chamamos o garoto e o tranquilizamos. E pela primeira vez desde que chegamos na escola, ele sorriu. Ele subiu no palco e cantou com a gente: Vida louca vida! E emendou: Só as mães são felizes! 

Rubinho Giaquinto é covereador da Coletiva em Belo Horizonte

 

Edição: Elis Almeida