Minas Gerais

Coluna

Dona Iolanda

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Reprodução - Arquidiocese de Passo Fundo
Rezava todos os dias para seus santos devotos: São Sebastião e Oxóssi

Nem todas as verdades serão ditas, já dizia o livro sagrado. Pois muitas vezes as verdades costumam ser duras, cruéis e...

Dona Iolanda era uma senhora daquelas que labutou a vida toda, o tempo todo. Teve poucas alegrias, quase nenhuma risada. Se orgulhava de ter casado com um búlgaro, um homem meio rude. Ela fazia questão de falar que havia casado com um gringo. Isso era motivo de orgulho para dona Iolanda.

Ela era empregada doméstica em uma casa de gente muito rica, que veio de Portugal para trabalhar no consulado português. Também vendia bugigangas para completar a renda familiar. Ficara viúva muito cedo, com quatro filhos para criar. O mais velho entrou cedo no mundo do crime. Isso deixava o coração de dona Iolanda dilacerado.

Aquela mulher, mesmo muito doente, não quis atrapalhar o futuro de seu filho e não o incomodou

Sua rotina era implacável: acordava muito cedo, arrumava os filhos e mandava-os para a escola. Depois pegava dois ônibus até o trabalho. Fazia chuva ou sol, ela estava de pé. E rezava todos os dias para seus santos devotos: São Sebastião e Oxóssi.

Sua esperança era seu segundo filho, Ederson, um bom garoto de quem todos gostavam na quebrada. Ele era bom aluno, tirava ótimas notas, gostava de português e era excelente em matemática. Arranhava no inglês e no francês. Todos ficavam admirados como ele conseguia fazer isso, sendo que não tinha tempo e nem dinheiro para comprar livros. Para dona Iolanda era só orgulho!

Ela sonhava com um belo futuro para ele. Mas como conseguir se o dinheiro mal dava para as despesas como água, luz, gás, comida e transporte? Um dia, criou coragem e conversou com seus patrões portugueses. Ela abriu o coração para eles. Contou-lhes toda a sua vida, desde o sertão até sua chegada à cidade grande. Eles ficaram comovidos. E ficaram de pensar em como ajudar seu filho. 

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Passaram-se alguns dias e eles a chamaram para conversar. Disseram que um amigo em Portugal tinha condições de ajudar o Ederson. O amigo era diretor de uma ONG que procurava talentos em vários países e que o perfil do Ederson se encaixava. Só que ele teria que ir para Portugal e ficar por lá um bom tempo. Dona Iolanda ficou triste e alegre ao mesmo tempo. Aceitou a ideia, mesmo com o coração partido.

Chegando em casa, contou a novidade para o filho, que ficou numa alegria só. Sambou e cantou sua música predileta. Ele gostava de Dona Ivone Lara, Paralamas e do Metálica. Fez uma mistura dos três. Contou para todos na quebrada que em breve iria para Portugal. Não levou um mês e Ederson já estava pronto para embarcar. Teve festa, despedidas, choros, abraços, discursos e muita reza. A quebrada toda feliz por ele. 

Chegou o dia do embarque. Dona Iolanda levantou-se cedo, como era de costume, e acendeu duas velas, uma para São Sebastião e outra para Oxóssi, e fez vários pedidos para o sucesso de Ederson. Tomou banho, colocou seu melhor vestido, perfume e rumou para o aeroporto, para o embarque do filho querido.

Naquela época, década de 80, a comunicação de longa distância entre as pessoas era muito difícil. Os telefonemas eram caros e as cartas levavam dias para chegar ao seu destino.

Já fazia quinze dias que Ederson tinha chegado a Portugal e só agora chegara uma linda carta dizendo que estava bem e se adaptando rápido. A mãe ficou toda feliz, e guardou a carta junto a seu coração, do lado esquerdo do peito. Foi até a imagem de São Sebastião e de Oxóssi e fez uma oração de agradecimento.

Mas, neste mesmo dia, dona Iolanda se sentiu mal. Suas filhas a levaram correndo ao posto de saúde mais próximo de casa. Fizeram exames e constataram que ela não estava nada bem. Sua diabetes tinha batido o pico. Estava para lá de 600 ml sua glicose, comprometendo sua saúde. Ela achou que iria voltar para casa naquele mesmo dia. Mas isso não aconteceu e ela ficou internada. 

Mesmo assim não se esquecia do Ederson e pediu a todos que não falassem que ela estava doente. Dona Iolanda não queria atrapalhar os estudos do filho em Portugal. Sabia que, se ele ficasse sabendo de sua doença, voltaria na hora para o Brasil. E não era isso que ela queria. Então todos concordaram em não dizer nada para o Ederson, pois esta era uma mentira do bem.

O estado de saúde de dona Iolanda piorava a cada dia. Com o passar dos meses, não enxergava mais, ouvia muito pouco, perdeu o movimento das pernas e falava muito baixinho. Enfim, o caso era muito grave. A equipe médica achava que não viveria por muito tempo mais.

Então, diante desse quadro, decidiram contar a verdade para o Ederson, de maneira suave, para não atrapalhar seus estudos.

Escreveram uma carta dizendo que a mãe não estava bem e que ela queria vê-lo e abraçá-lo. Ao receber a carta, lá em Portugal, ele se desesperou e, no outro dia, embarcou para o Brasil.

Mas a vida tem sua própria lógica. Como a carta demorou a chegar em Portugal, dona Iolanda falecera três dias antes de Ederson chegar ao Brasil. Ela piorou muito numa madrugada, sua pressão caiu vertiginosamente, sua glicose chegou a 40 e seu coração não aguentou. Na sua mão, tinha um terço que fazia orações para Ederson.

Ederson não estava presente ao enterro de sua mãe. Aquela mulher, mesmo muito doente, não quis atrapalhar o futuro de seu filho e não o incomodou! Aguentou sua dor e doença como uma verdadeira guerreira. Só mesmo o amor de mãe para gente entender sua atitude. Dona Iolanda sabia que o futuro de Ederson era mais importante que o seu presente.

E Ederson chega de Portugal e vai direto para o cemitério. Chora muito. Tem orgulho de sua mãe e de sua história. E no túmulo da mãe fez-lhe a promessa de ajudar os irmãos.

Tira o irmão da cadeia, pega as duas irmãs e monta um grande restaurante de comida mineira. O restaurante chama “Cozinha da Dona Iolanda”. O restaurante é sucesso internacional. Todas as noites Ederson lembra e reza para sua mãe. A ligação dos dois transcende qualquer explicação racional. Nasce Iolanda, a primeira filha de Ederson. 

Rubinho Giaquinto é covereador da Coletiva em Belo Horizonte

 

Edição: Elis Almeida