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Crônica | Donnaruma

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“O destino os fez se encontrarem num domingo à tarde em lados opostos” - AP Photo/Eraldo Peres
Ele ia ficando a cara e o jeitão do seu velho pai: muito generoso e solidário

Donnaruma era o filho temporão de uma família muito unida de cinco irmãos. Nasceu o mais escuro dos filhos. Seu pai era um italiano do sul, e sua mãe uma argentina arretada. A natureza foi bem generosa com ele: bonito, gente boa, bom de bola, bom de escola, amado por todos da quebrada e muitas namoradas.

Ele não podia reclamar da vida. Também era o filho predileto dos seus pais. Protegido ao extremo. Gostava muito de comer peixe. Quebrou uma tradição na família cruzeirense e era atleticano. Conseguiu até que seu pai o levasse a um jogo do Galo e ficasse na torcida do gol da lagoa.

Quando nasceu, foi a maior polêmica. Como nasceu tão escuro? Puxou quem? Com pais brancos, como pode? A vizinhança logo falou em traição. Crucificou a velha argentina. O velho italiano e sangue quente comprou a briga com todo mundo: confio no grande amor da minha vida: Donnaruma é meu filho, sim! Não vou fazer raios de exame de DNA porcaria nenhuma. Ele puxou meu irmão mais novo, que era escuro como ele. Temos descendência dos mouros e dos sarracenos.

Donnaruma e seu irmão ficaram décadas sem trocar uma palavra sequer

Superada a história e o tempo passando, ele ia ficando a cara e o jeitão do seu velho pai. Muito generoso e solidário, foi ficando ainda mais amado na quebrada. Só que tantos predicados também lhe trouxeram muita inveja, que começou dentro de casa.

Seu irmão, que perdeu o trono para ele, nunca o engoliu e sempre o humilhou o quanto pôde na frente de todo mundo. Quando Donnaruma nasceu, foi uma alegria para seus pais e uma grande festa, e seu irmão, que era o caçula, ficou esquecido, isto fez crescer um ódio no seu coração que o cegava perante o brilho do seu irmão. Ele nunca aceitou que Donnaruma fosse uma pessoa muito diferenciada.

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Esse irmão era o mais medíocre dos cinco, tornou-se um funcionário público de uma repartição de pouca expressão e burocrática. Era casa trabalho, trabalho casa. Era metódico, racista, homofóbico e seu alvo predileto era Donnaruma.

Donnaruma, um militante ativo da cultura e dos direitos humanos, foi se tornando um grande escritor conhecido e popular, chegando a ser ministro da cultura do governo democrático e progressista que fez várias transformações para os mais pobres. Donnaruma e seu irmão ficaram décadas sem trocar uma palavra sequer. A última vez foi no enterro dos pais, muitos anos atrás. 

Só que o destino os fez se encontrarem num domingo à tarde em lados opostos. De um lado, seu irmão gritava:

- Minha bandeira nunca será vermelha! Morte aos comunistas! Viva o mito! 

Do outro, Donnaruma gritava:

- Por um mundo em que caibam vários mundos! Abaixo a repressão! Ditadura nunca mais! 

Como a cidade é relativamente pequena, os dois trombaram na maior e principal avenida, e o bicho pegou:

- Fala, seu negro comunista! 

- Beleza, meu irmão? 

- Nunca tive irmão negro, não.

- Cuidado com seu coração, hein? Você tem colesterol alterado, como nosso pai.

- Nosso pai? Você nunca foi filho dele. Ele era branco e europeu!

Nisso apareceu a turma do deixa disso. O irmão ainda cuspiu na cara de Donnaruma, que não teve nenhuma reação.

O tempo passou. Os dois nunca mais se viram.

Um dia, Donnaruma fica sabendo da morte do irmão, por meio do seu irmão mais velho. Ele ficou desolado e triste por nunca ter tido um relacionamento bom com ele. Nunca ter feito as pazes. Lembrou imediatamente do velho pai e mãe que tanto o amaram.

Num feriado longo e sem fazer nada, pegou seu carro e foi ao cemitério para visitar o jazigo da família. Levou uma bandeira do Brasil e colocou em cima do túmulo, onde o irmão fora enterrado havia seis meses. Lágrimas caíam do seu rosto sem parar.

*Rubinho Giaquinto é covereador da Coletiva em Belo Horizonte.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

 

Edição: Rafaella Dotta