Minas Gerais

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Crônica | Dona Sebastiana

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Ajoelhou e rezou para a alma da mãe, que morreu de fome no sertão brasileiro - Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Chateada com a vida, ela ligou o “foda-se”, não foi trabalhar e foi conhecer a lagoa da Pampulha

Todos os dias, às seis da manhã, o batido era o mesmo. Por mais de 30 trinta anos, Dona Sebastiana levantava, tomava café ralo com pão dormido, escovava os dentes, prendia os cabelos que estavam ficando brancos e rezava para Ogum. Ela não tinha ninguém na vida. Era ela por ela mesma. Tinha boletos para pagar. O aluguel, a água, o gás e a luz eram suas preocupações diárias.

Pegava o ônibus às 6:45 certinho, porque o próximo só saía às 7:15, o que atrasaria todo seu planejamento do dia. Ela seguia para a estação de metrô para chegar até a casa da patroa. No fundo, estava cansada da vida que levava. Não tinha um momento de lazer ou de ócio. O mundo não lhe permitia tal ousadia. 

Um dia, muito chateada e triste com a vida, resolveu ligar o “foda-se” e não ir trabalhar. Queria conhecer a cidade, onde já morava havia mais de 30 anos. Pegou um ônibus e foi para a lagoa da Pampulha. Colocou na cabeça que iria dar a volta na lagoa naquele dia. Ela ouvia histórias de pessoas que davam a volta na lagoa, inclusive, sua patroa, que nunca a convidou para realizar tal façanha. Ela tinha o dia todo para caminhar aproximadamente os quase 20 quilômetros. 

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Desceu perto da igrejinha de São Francisco, uma obra de Oscar Niemeyer. Parou em frente à igreja e admirou sua beleza. Ficou maravilhada com o painel externo na cor azul, de Cândido Portinari, que retratava a via sacra de Jesus Cristo. Ajoelhou e rezou para a alma da mãe, que morreu de fome no sertão brasileiro. Observou que, dentro da igreja, tinha uma pintura de Adão e Eva sendo expulsos do paraíso. 

Ainda tinha muita caminhada pela frente. Viu também um parque de diversão do outro lado da rua. De longe, avistou a roda-gigante e pensou: como essa coisa grande gira e não cai? Não resistiu e quis andar na roda-gigante do parque. Comprou o ingresso e, com muito medo, sentou numa cadeira fria e descascada. Quando o aparelho começou a se movimentar, quis sair da cadeira e começou a chorar, de tanto medo, que logo passou, quando a roda parou no ponto mais alto e ela pôde ver a cidade lá de cima, o Mineirão e toda a lagoa de que tanto ouviu falar por anos. Gostou tanto que andou umas cinco vezes no brinquedo. 

Quando estava indo embora do parque, ouviu no alto-falante uma propaganda: “não percam daqui a meia hora a apresentação da mulher que se transforma em gorila”. Observou que a fila para ver o espetáculo estava enorme. Ficou intrigada: “deve ser verdade esse trem desse negócio, né?” Perguntou para o moço que vendia ingressos:

- Moço, como uma mulher vira gorila? 

- Dona, compra o ingresso que a senhora vai ver. 

Dona Sebastiana era muito desconfiada. Mesmo assim, comprou o ingresso. Achou muito caro, mas não desistiu de ver a mulher virar gorila. A fila começou a andar. O lugar era escuro e não dava pra ver nada. 

Logo, o espetáculo começou. Uma voz bem aveludada pediu que todos ficassem em silêncio.  As luzes começaram a piscar rapidamente e surgiu uma mulher presa entre grades. A mulher estava quase nua.  A voz aveludada começou a descrever a transformação da mulher em gorila. Começaram a aparecer pelos pelo corpo todo da mulher.

Dona Sebastiana ficou atônita! As pessoas começaram a gritar. O desespero tomou conta do local. Umas pessoas com medo. Outras de zoação, mesmo. Dona Sebastiana começou a suar frio e a se tremer toda. A cada segundo, a mulher ia ficando mais parecida com um gorila. As luzes não paravam de piscar e uma música de suspense fazia o clima todo parecer real. 

Apavorada, Dona Sebastiana saiu correndo e nem viu o final do espetáculo. Sua pressão subiu e ela passou muito mal no parque. Tiveram que chamar o Samu para socorrê-la. Ela acordou no hospital Risoleta Neves, onde contou o ocorrido para a médica que a atendeu. A médica sorriu e explicou como funcionava a brincadeira. Dona Sebastiana ficou com muita vergonha de ter caído na brincadeira e começou a dar risadas de si mesma. Prometeu que ia ligar o “foda-se” mais vezes na vida. Agradeceu à médica e foi para o ponto de ônibus para voltar para casa. 

No ponto de ônibus, ela leu num cartaz: parque de diversão contrata mulher para se transformar em gorila. Nunca mais Dona Sebastiana viu a cara da patroa.

 

Edição: Larissa Costa