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Opinião

Artigo | Perto demais de Deus

Setores conservadores do Legislativo tentam fazer valer sua influência sobre a educação de Porto Alegre

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Assim como Freire é uma referência na Educação Popular, outro autor, é o sociólogo da educação estadunidense Michael Apple - Reprodução

O céu é o limite? Parece que sim. Pelo menos para alguns parlamentares alinhados ao que se denominou, desde a última década, de “Bancada da Bíblia”, expressão que evidencia a tentativa de influência de setores conservadores que ocupam espaço no Legislativo e tentam com obstinação fazer valer sua agenda nas políticas públicas.  

É nesse contexto que o vereador Hamilton Sossmeier, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) apresentou e teve aprovado em uma primeira instância na Câmara Municipal de Vereadores Porto Alegre, nessa semana, o Projeto de Lei que cria o serviço voluntário de Capelania Escolar nas escolas da rede pública municipal da Capital.

Pastor Evangélico da Igreja do Evangelho Quadrangular, Sossmeier é também presidente do Conselho de Pastores de Porto Alegre. Integra a arraia miúda na Câmara, mas agora em seu segundo mandato, surfando no apoio do neopentecostalismo pelo governo federal, ganha projeção e visibilidade. Não por acaso a inciativa teve apoio de Ramiro Rosário (PSDB), também vereador e um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL) e ligado desde a juventude à Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), de cunho notadamente conservador.

Escola laica e a polêmica do retorno do Ensino Religioso 

O Projeto de Lei da Capelania Escolar prevê o atendimento aos alunos “envolvidos em conflitos, desajustes familiares, crise emocional ou outros problemas”. Ainda deve ser analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e é possível sofra reveses.

Contudo, é sinalizador preocupante do que vemos se configurar: uma tentativa de doutrinação proselitista de estudantes, sob o manto de um pretenso trabalho voluntário. O objetivo, muito evidente, é uma tentativa de colonização espiritual da escola pública, aproveitando o que os defensores do liberalismo chamam de “janela de oportunidades” de governos sensíveis às suas pautas.

A Comuna de Paris e o ideário da educação pública

Em 1871, com a extraordinária experiência da Comuna de Paris, pela primeira vez um programa de educação pública, gratuita, laica, obrigatória e profissionalizante, foi apresentado à sociedade, a partir das ideias surgidas dos congressos da Associação Internacional dos Trabalhadores e das experiências protagonizadas por educadores progressistas de Paris. Naqueles pouco mais de setenta dias, sob um governo de nossa classe, se plantou algo que agora, mais de 150 anos depois precisamos reafirmar: a necessária separação entre Estado e Religião e laicidade da educação pública.

É sob a marca da luta social e popular dos despossuídos/as que as revoluções burguesas a incorporam em sua pauta a laicidade. É nossa tarefa lembrar disso. A escola deve permanecer laica, como salvaguarda, inclusive, da democracia e da diversidade religiosa e sociocultural da população.

O anticristo e a teologia da prosperidade em aliança com o Capital: lá e aqui

O fenômeno do bolsonarismo é maior que o Messias de Brasília. Ainda que em queda franca, pela conta que agora chega; a responsabilidade de centenas de milhares de mortos na pandemia, as comprovações de corrupção, a inflação galopante e 14 milhões de desempregados e a legião crescente de mais famintos. Ainda assim, o bolsonarismo tem apoio de parcela significativa das lideranças neopentecostais que lhe são fiéis, e reproduzem sua política, sob a slogan que cimenta essa aliança: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

No cenário educacional, sob a égide do bolsonarismo e de gestões a ele vinculadas, há em curso uma revitalização da agenda neoliberal na educação, com um novo gerencialismo que promove como reformas educativas que colocam em risco a própria existência da escola pública como a conhecemos hoje. Assim é em Porto Alegre, com Sebastião Melo (MDB) e sua secretária de Educação Janaína Audino, legítima representante dos interesses privatistas na educação sob as benção do patriarcado da família Sirotski, conglomerado RBS e do Movimento Todos pela Educação (clique para saber mais).

 Um autor imprescindível para entender a Aliança Conservadora: Michael Apple

2021 foi e ainda está sendo um ano para celebrar e revitalizar o pensamento fecundo do grande educador, cidadão do mundo e andarilho da utopia, Paulo Freire, com muita justiça, no centenário do seu nascimento. Assim como Freire é uma referência incontornável e sempre necessário nos marcos da Educação Popular, outro autor, também contemporâneo a ele, o sociólogo da educação estadunidense Michael Apple, deveria ser mais lido e lembrado entre nós.

Para quem se interessar possa, sugiro a leitura da publicação "Educação crítica e Educação Popular: um diálogo (norte-sul) entre comadres" (o texto pode ser acessado gratuitamente aqui).

Apple tem várias obras traduzidas no Brasil e é uma das maiores referências dentro de Pedagogia Crítica. Ao estudar o contexto das reformas educacionais nos Estados Unidos, em especial a partir das últimas décadas, detectou o que chamou de hegemonia pautada por uma restauração conservadora, conduzida por um novo bloco histórico.

Um sistema de alianças da Nova Direita sob o comando dos neoliberais que aglutina neoconservadores, populistas autoritários e nova classe média profissional, que têm interesses distintos, mas se unem em torno de um projeto mais amplo. Suas análises são ponto de partida para percebermos, no Brasil e particularmente, em Porto Alegre, como se desenha, com peculiaridades, a “nova proposta pedagógica” na capital gaúcha. 

Nessa lógica se insere a verdadeira “cruzada moral” do pastor neopentecostal, em verdadeira batalha espiritual a ser travada em todas as frentes para arrancar pela raiz a influência do “comunismo”, do ateísmo, da “ideologia de gênero”, da “doutrinação marxista”. Por isso, a escola com mordaça, as escolas cívico-militares, a louvação aos “valores da família”, a idealização e a busca de volta “à tradição, à ordem”. Por isso o controle do processo de ensino e aprendizagem e do trabalho docente. Por isso uma proposta autoritária e conservadora.

Deus na carteira?

Concluo aqui com um convite a revisitarmos uma canção ("Perto Demais de Deus" - Chico César) que bem expressa essa sanha de recolonizar mentes e corações, sob a benção de pastores com a “sagrada missão” de “revelar a verdade” aos incautos e ganhá-los para “o projeto da salvação”:

Em tempo: muito emblemática a extinção da Filosofia como componente curricular e a unção de pastores como guias do rebanho, de acordo com o ideário de Melo e Janaína Audino. Mas este é tema para um outro texto.

* Marco Mello é professor da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko