Minas Gerais

RACISMO

Artigo| Fraude na UFVJM, em Teófilo Otoni (MG), levanta debate sobre cotas

Universidade cancelou matrícula de estudantes não aprovados por comissão que avaliou características fenotípicas

Teófilo Otoni (MG) | Brasil de Fato MG |
"Lei de Cotas é uma medida de reparação histórica, uma vez que o racismo estrutura a sociedade" - Reprodução

A luta pela reserva de vagas, conhecida como cotas raciais, é histórica e tem a lei nº 12.711, de 2012, como um marco importante. A implementação dessa medida de reparação histórica se dá a partir do entendimento e da percepção de que o racismo é um elemento estruturador da sociedade. Considera também a análise da realidade brasileira em que o racismo é de cor ou de marca (fenótipo) e não de necessariamente de origem (genótipo).

Mesmo com todas as normativas que evidenciam os critérios fenotípicos como norteadores do preenchimento das vagas reservadas para pretos e pardos, ainda há muitos possíveis casos de ocupação indevida de cadeiras nas universidades federais. Candidatos tentam se basear em parentes negros ou na certidão de nascimento para alegar pertencimento ao público alvo de cotas. 

Cada fraude nas cotas significa um jovem negro ou indígena a menos na universidade
 

Como argumentou, brilhantemente, o ex-ministro Cézar Peluso, quando votou pela improcedência da ação proposta pelo partido Democratas (DEM) contra a UnB, “ninguém discrimina alguém porque terá recorrido a exame genético e aí descoberto que a pessoa tenha gota de sangue negro. Isso não faz sentido. O candidato que sempre se apresentou na sociedade, por suas características externas, como não pertencente, do ponto de vista fenotípico, à etnia negra, mas que genotipicamente a ela pertença, a mim me parece que não deva nem possa ser escolhido e incluído na cota, pois nunca foi, na verdade, discriminado. Essa é situação que, a meu juízo, deveria ser considerada na reavaliação dos critérios de escolha".

Fraude de cotas na UFVJM

No caso da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), as Comissões de Heteroidentificação, responsáveis pela validação de auto declaração dos candidatos, só começaram a existir a partir do primeiro semestre de 2018, após a entrada de diversos estudantes que já se valiam da reserva de vagas apenas com a auto declaração. 

Desde antes disso, os editais ressaltavam que as informações prestadas eram de inteira responsabilidade do candidato e poderiam ser verificadas em qualquer momento a posteriori. A verificação foi estruturada em 2019, quando uma resolução do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepe) da UFVJM estabeleceu que os estudantes passariam por avaliação de uma banca em caso de denúncias.

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No final de 2019, a partir de denúncias feitas à ouvidoria da UFVJM, pelo menos 11 estudantes admitidos pela reserva de vagas foram submetidos a comissões para avaliação de seus caracteres fenotípicos.  Desses, pelos menos sete casos foram negados e foram submetidos a Processo Administrativo Disciplinar Discente (PADD). Alguns processos aguardam parecer da Procuradoria Geral Federal ligada à universidade.

Outros três estudantes tiveram suas matrículas canceladas por documento assinado pelo reitor Janir Alves Soares. Esses que foram desligados da universidade entraram com recurso no Conselho Universitário da UFVJM (Consu), que começou a discussão da pauta no último dia 21 de outubro. No entanto, apenas um recurso foi julgado e a decisão ainda não é pública. Entretanto, o estudante cujo recurso foi julgado está fora do quadro de estudantes e do sistema eletrônico E-campus (Sistema Integrado de Gestão Acadêmica ou o popular "portal do aluno").

A decisão de desligar alunos que fraudaram as cotas é simbólica para as lutas e reivindicações populares, e, nesta conjuntura, trata-se de uma vitória que deve ser comemorada. Além disso, é uma oportunidade para debatermos com profundidade o impacto da Lei de Cotas, principalmente no contexto de uma universidade pública situada nos Vales do Jequitinhonha, do Mucuri, no Norte e no Noroeste de Minas.

Neste momento em que o governo federal ataca direitos e sonhos da juventude brasileira, acaba com políticas públicas e sucateia a educação pública, é preciso reafirmar a importância de políticas como a Lei de Cotas. É preciso também cobrar e zelar para que essas políticas sejam devidamente implementadas. Só assim elas cumprirão seu papel, que é mitigar, cada vez mais, as enormes desigualdades sociais, raciais e de gênero que existem no Brasil.

Cada fraude que ocorre significa um jovem negro ou indígena a menos na universidade. É um sonho que não se inicia. É um sinal de descaso à árdua luta do povo brasileiro – especialmente do povo preto e indígena –, dos movimentos populares e do movimento estudantil. É a perpetuação de um legado histórico de usurpação. 

A luta é árdua, mas não andamos só. Seguimos por todas e todos que vieram antes de nós e por todos os que virão. Pelo sangue nas matas e pelos oitenta tiros "por engano". Por Dandara e por Marielle. Por Zumbi e Miguel Otávio. Pela justiça verdadeira. Kaô Kabecilê! 

Danilo Pereira Bispo é presidente do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e militante do Levante Popular da Juventude. 

Deise Dutra Soares é diretora de políticas de diversidade e combate a opressões do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e militante do Levante Popular da Juventude.

**Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

 

Edição: Larissa Costa