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Cadeias no Brasil: projeto Remição de Pena pela Leitura pode se tornar uma ponte à liberdade

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Entre 2006 e 2014, população carcerária masculina no país aumentou 220%, e feminina aumentou 567,4% - Imagem de Arquivo/Agência Brasil
Mesmo livros e filmes de sucesso não fizeram o poder público examinar a fundo seus mecanismos

Por Marcos Estevão Gomes Pasche*

É curiosa uma generalização de certa procedência: a maior parte da população brasileira jamais adentrou uma cadeia, que por isso se afigura um enigma, mas todo mundo sabe se tratar de um espaço degradado e degradante. 

Aspectos do punitivismo nacional e as controvérsias que o cercam remontam ao início da invasão do território que viria a ser o Brasil, ainda que não houvesse o encarceramento de modelo vigente. Em sua famosa Carta, Pero Vaz de Caminha relata que dois tripulantes ficariam na nova possessão lusitana após a partida da frota, para prenunciarem a conversão dos indígenas ao catolicismo. Eram dois degredados.

No período do Brasil Colônia, cadeias eram em calabouços ou abaixo do rés-do-chão de câmaras administrativas

Esta palavra tem relação direta com degradado, e ambas designam o acusado de crime grave que deverá perder graus da dignidade moral e social. O expansionismo lusitano preconizava a disseminação da fé católica, e, contraditoriamente, a construção de tal alicerce na nova terra foi delegada a homens expulsos da capital do império. 

Com o passar do tempo colonial, as cadeias foram tomando forma, algumas das quais gestadas em calabouços ou abaixo do rés-do-chão de câmaras administrativas. No século XIX, a Independência assinalou novo entendimento nesse campo, com a letra da lei coibindo castigos e determinando asseio onde ficassem pessoas presas. Surgiam as casas e colônias de correção, novidades que, sob um sistema escravocrata, terminaram por perpetuar a estrutura racista que privaria de liberdade preponderantemente aqueles que a rigor não a conheciam de forma plena. 

Foi numa dessas colônias que, já na republicana década de 1930, Graciliano Ramos passou a maior parte do seu período de prisão, entre 1936 e 1937. Não se teve notícia de acusação formal contra o escritor, que na paradisíaca Ilha Grande, no Rio de Janeiro, testemunhou e experienciou circunstâncias da apavorante crueldade do Estado, que violenta pela ação e também pelo alheamento.

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Afinal, na década de 1950, morto e consagrado o autor, são publicadas as Memórias do cárcere, livro magnânimo e reeditado por dezenas de vezes, mas que não motivou o poder público a examinar a fundo seus mecanismos prisionais. 

Algo semelhante se pode dizer de Carandiru (2003), filme de Hector Babenco lançado no início do século XXI e presente na lista das maiores bilheterias do cinema brasileiro. Inspirado no livro Estação Carandiru (1999), de Drauzio Varella, outro sucesso comercial, o filme teve sua circulação potencializada pela televisão, mas também isso não foi recebido por autoridades como imperativo à discussão prioritária do assunto, ainda que estas duas obras façam referência direta ao massacre ocorrido em 1992 na extinta Casa de Detenção de São Paulo.

Ao contrário. O filme foi lançado no exato ano em que o Partido dos Trabalhadores iniciou o exercício da Presidência da República, num ciclo só interrompido com o golpe contra Dilma Rousseff, em 2016. Nessa fase, o Brasil realizou avanços democráticos e inclusivos inéditos em sua história, mas estranha e ilustrativamente José Eduardo Cardozo, quando Ministro da Justiça entre 2011 e 2016, costumava se referir às prisões brasileiras como “medievais”. 

Em O que é encarceramento em massa? (2017), Juliana Borges mostra números que explicam esse ponto de atraso mesmo num contexto de progresso. Entre 2006 e 2014, a população carcerária masculina teve aumento aproximado de 220%, ao passo que a feminina aumentou 567,4%.

Essa explosão talvez não signifique segurança pública, mas escancara a vocação excludente do Brasil: ainda de acordo com a socióloga, nosso país abriga uma das maiores populações carcerárias do mundo, sendo os contingentes formados por maioria de pessoas negras, pobres e de baixa escolaridade.

Tomo esse último ponto para abordar um interessante contraponto: a Remição de Pena pela Leitura. Instaurada pioneiramente no estado do Paraná, em 2012, ela deriva do entendimento de que a educação é direito de todas as pessoas, e funciona sobretudo como projeto de extensão universitária.

Em linhas gerais, trata-se de um expediente voltado para que pessoas privadas de liberdade tenham suas penas reduzidas a partir da leitura frequente de livros e da escrita de resenhas ou relatórios de leitura.

 A relevância do projeto contrasta com a precariedade administrativa que o cerca. Concebido pedagogicamente, é gerido pela segurança pública, motivo de adversidades cotidianas. Ainda assim, a Remição de Pena tem realizado feitos expressivos, como a inclusão de pessoas não alfabetizadas, no Tocantins, e, no Rio de Janeiro, a elaboração de um projeto de lei orientado por professores e estudantes atuantes no projeto.

Em 2019, o Departamento Penitenciário Nacional anunciou a criação do Programa Nacional de Remição de Pena pela Leitura, reivindicando-a como política pública, mas o movimento foi obstruído pela pandemia. Que a possível retomada dos trabalhos se dê também como incremento de forças, para que se aprofundem os processos que metamorfoseiam livros em livres.

*Marcos Estevão Gomes Pasche é professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e crítico literário. Pela UFRRJ, coordena o projeto de extensão Remição de Pena Pela Leitura, que atua em unidades prisionais do Rio de Janeiro.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

 

Edição: Rafaella Dotta