Minas Gerais

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Crônica | Querida Filha

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Deixou para trás a única filha, mas tinha esperança de buscá-la um dia - Reprodução EBC
Gringo, como era conhecido aqui na quebrada, tinha uma angústia no coração

“Desejo, primeiramente, que você esteja bem de saúde e em progresso nos estudos. Eu vou indo bem, seus irmãos também. Aqui no Brasil faz sol e muito calor durante todo o ano. O povo é maravilhoso, gentil, fraterno e muito bonito. Sofro muito com o calor aqui. Mando-lhe uma fotografia para conhecer sua nova família brasileira e seus amigos brasileiros”.

“Credo, meu pai, como são pretos e escuros sua família e seus amigos. Não quero conhecê-los. Que povo feio, meu Deus! Não os traga aqui na nossa querida terra, seria uma vergonha para sua verdadeira família. O povo aqui vai rir de você”. 

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Gringo, como era conhecido aqui na quebrada, tinha uma angústia no coração, pois não conseguiu ter um bom relacionamento com a filha, que ficou em sua terra natal. Ele veio para o Brasil fugindo dos nazistas alemães. Era do partido comunista de seu país e um operário bem ativo no sindicato. Conhecia como ninguém as obras de Karl Marx, Hegel, Reich, Trotsky e Lênin. 

Ele perdeu sua primeira esposa por causa da fome durante a Segunda Guerra Mundial. Deixou para trás a única filha, mas tinha esperança de buscá-la um dia. Nunca conseguiu. Seu relacionamento com ela não era dos melhores, ela nunca o perdoou por ter casado de novo e com uma mulher negra. 

A filha morreu depois de uma década que ele chegou ao Brasil. Isso dilacerou seu coração. Aquele homem alto e forte chorava o tempo todo. Querido por todo mundo, mas não conseguiu ter uma aproximação de afeto e carinho com sua filha. Se sentia culpado pela morte dela. 

Em seu quarto, sempre teve uma foto dela bem grande ao lado da foto de sua família brasileira. Antes de morrer, pediu para o neto predileto não deixar de conhecer sua terra natal. 

Um fato muito curioso no seu enterro me chamou a atenção: um homem cabisbaixo, olhou por muito tempo o velório de longe, mas não se aproximou do caixão. Fui ao encontro desse senhor. 

- Por que você não se aproxima do caixão, irmão? 

- Porque não sou da família e tenho vergonha.

- Por que? 

- Porque assaltava direto o seu Gringo. Esse homem tem Deus no coração.  

- Como assim? 

- Eu sabia o dia do pagamento dele. E dava o bote no mesmo dia, na mesma hora e no mesmo lugar por muito anos. Parece que ele até facilitava o assalto.  Ele nunca chamou a polícia. Um dia, ele me chamou para conversar e disse: 

- “Você não precisa me assaltar mais, lhe dou o dinheiro sem problemas”. Daí ficamos amigos. Ele foi padrinho do meu primeiro filho. Esse homem não existia. Ele me tirou do mundo do crime. 

- Uau! Que história! Esse seu Gringo era mesmo de outro planeta!  

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

Edição: Larissa Costa