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A história não dá descanso

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"Os três tempos da história consagram três inspirações para a militância" - Tuane Fernandes / Mídia NINJA
Não se pode esperar as eleições para retomar a racionalidade

A situação política brasileira tem desafiado muitos analistas. No entanto, parece que nem sempre falam da mesma realidade. Para alguns, a maior dificuldade é entender como o país se meteu na aventura fascista de Bolsonaro e companhia, a partir de fatos cada vez mais revoltantes do dia a dia. A tarefa dada frente à incessante onda de monstruosidades é a da vigilância máxima, a partir dos eventos autoritários que vão se somando, impedindo, na medida do possível, sua escalada inevitável.

Enquanto isso, outros pensam que o momento é de juntar forças, mesmo discordantes, para dar conta do enfrentamento urgente ao presidente e da retomada da via democrática que vinha sendo construída. Com a ameaça explícita de autoritarismo de Estado e de retrocesso das políticas populares, o maior desafio é interromper o projeto de poder incorporado por Bolsonaro em nome de seus patrocinadores, como laranja do neoliberalismo injusto em economia, autoritário nas relações sociais e reacionário em costumes. O pior dos mundos possíveis.

Brasil hoje tem problemas de curto, médio e longo prazo

Já para um terceiro grupo, é preciso pensar grande, resgatar projetos mais ambiciosos e construir uma alternativa socialista desde já, considerando que o trabalho destrutivo do atual governo não é um acidente de percurso, mas a materialização ardilosa de um projeto de longo prazo. Que começa com a aniquilação de conquistas em várias áreas, para depois edificar estruturas orgânicas de manutenção do poder político e econômico voltado para o interesse do mercado e da minoria que domina suas engrenagens.

O francês Fernand Braudel (1902-1985), considerado um dos grandes historiadores do século 20, talvez possa ajudar nesse momento. Além de autor de trabalho clássico sobre o Mediterrâneo na época de Felipe II, escrito quando estava preso num campo de concentração, durante a Segunda Guerra, ele contribuiu para a criação da Universidade de São Paulo, onde chegou a lecionar entre 1935 e 1937. Seus estudos levaram a uma nova forma de relacionar a ciência da história com diferentes configurações do tempo.

O amanhã não está garantido, é preciso luta permanente

Para Braudel, assim como o tempo pode ser entendido a partir da duração dos acontecimentos, a história precisa estar atenta a essa dimensão variável. Para um tempo curto, uma história que abarca eventos de curta duração. Para o tempo médio, a história deve contribuir com reflexões que levem em conta a conjuntura e sua maior complexidade. Já para o tempo longo, entra em cena a história das estruturas da sociedade. Na vida e na política, não é incomum confundir as três esferas.

O Brasil hoje tem problemas nas três durações do tempo. Bolsonaro a cada dia oferece um evento destrutivo, seja na educação, na saúde, no meio ambiente e na extinção do Bolsa Família, para ficar nas crises mais recentes. Os exemplos são vergonhosos. A desconfiança sobre o Enem com a demissão em massa de técnicos que denunciam aparelhamento ideológico na área da educação. A corrupção, a inépcia, o negacionismo e os crimes contra a humanidade no combate à pandemia.

Maior desafio é interromper o projeto de poder incorporado por Bolsonaro em nome de seus patrocinadores

 A desmontagem da fiscalização, o desprezo com as normas ambientais e a frouxidão dos compromissos com a questão climática, que levaram o país à posição de paraíso de predadores e pária internacional. E a manipulação da política de transferência de renda, como fim do reconhecido Bolsa Família, para alimentar o apetite fisiológico do Centrão, em troca de apoio no parlamento, e cacifar o projeto de reeleição. E por aí segue.

Essa lógica pode ser observada em todos os campos da administração pública e costuma mobilizar atenção dos grupos envolvidos nas táticas de desmonte. A ação política desses atores precisa ser atenta e imediata. Não se pode esperar, por exemplo, que as eleições do ano que vem criem condições para resolver os problemas ou retomar a racionalidade. No curto prazo, as derrotas tendem a naturalizar uma situação que depois de torna mais difícil de reverter.

Uma certeza unifica os três tempos da vida: a luta permanente

Se no tempo imediato não pode haver descanso, no médio prazo a tarefa é outra. Mais que um tiroteio cego de absurdos, o atual governo promove a ordenada implantação de um programa autoritário, regressivo e antipopular. Essa conjuntura precisa ser respondida com uma ação política mais ampliada, que considera o papel das instituições e do jogo político em toda a sua extensão. Por isso, é preciso derrotar o projeto vigente em todas as instâncias, fortalecer as forças sociais de oposição e movimentos populares, fazer alianças necessárias e conquistar o poder dentro das regras da democracia.

A dimensão de médio prazo ou conjuntural talvez seja a que mais se aproxima do que se convencionou chamar de política tradicional, que se move pela crítica, conquista e manutenção do poder, tendo a eleição como momento de maior destaque. Mas é importante lembrar sempre que ela é alimentada pelo nível anterior, da permanente vigilância e atuação incansável em todas as disputas, e aponta para o patamar seguinte, da chamada longa duração. Não dá para esperar o processo eleitoral do ano que vem quando as derrotas vão se empilhando.

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Não se trata apenas de fazer oposição e conquistar o poder político como chave para todas as outras transformações, mas de construir uma utopia sustentável, democrática e popular. Os desafios dos propósitos de longo prazo comprometem a esquerda, hoje, em participar ativamente de todas as batalhas pela liberdade e justiça social, e em manter a clareza nas alianças necessárias pelo momento.

Mas sem perder o norte de seus fundamentos mais profundos. Braudel certamente não pensou nesses termos, mas sua teoria oferece um caminho de compromisso potente. Há muito que fazer no cotidiano das lutas sociais e na política institucional, mas não se pode arrefecer na construção de uma democracia socialista. O amanhã não está garantido, nem por significativas vitórias pontuais, nem pela conquista do poder pelas urnas e muito menos por certa crença na força redentora e inevitável da história. Só há uma certeza que unifica os três tempos da vida: a luta permanente. 

Os três tempos da história consagram três inspirações para a militância.

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida