Rio Grande do Sul

Entrevista

“O racismo, o machismo estrutural é o que não nos deixa avançar”, afirma Jeferson De

Ao receber homenagem, o diretor falou à imprensa sobre representatividade, racismo estrutural, afeto e ancestralidade

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"O que eu tento fazer nos meus filmes é dar profundidade, inclusive à nossa dor" - Foto: Katia Marko

“As nossas produções são muitas vezes invisibilizadas. E ai as pessoas começam a falar que não existem esses profissionais negros. E a proposta do festival foi para dizer o contrário, apresentar dados que existem, que estamos aqui produzindo, e produzindo muito”, desabafou com a voz levemente embargada a cineasta Camila de Moraes, a primeira mulher negra a dirigir um longa metragem no Rio Grande do Sul, na entrega da homenagem ao diretor Jeferson De, nesta quinta-feira (25), no Solar dos Câmaras, na Assembleia Legislativa. 

Curadora do Festival Cinema Negro em Ação, juntamente com Sofia Vereda, com os olhos lacrimejando, a cineasta falou da criação do festival desde o seu começo até sua concretude... “Esse projeto vem sendo pensado, idealizado desde 2019. No ano 2020 conseguimos com o Instituto Estadual de Cinema, junto à Casa de Cultura Mario Quintana, através da Secretaria de Cultura, realizá-lo em formato on-line. Ele se tornou a maior realização afirmativa do Rio Grande do Sul”, destacou, falando do grande número de inscritos no festival, tanto do estado, como do país e até fora do país. 

Ela apontou que no caso de curta-metragem, por exemplo, categoria com o maior número de inscrições, a maioria deles são realizados de forma independente, sem patrocínio, incentivo. “Precisamos colocar isso na balança, precisamos entender porque isso se torna uma realidade desses realizadores negros. E quando fazemos esse evento estamos traçando estratégias e iniciativas politicas para nos mantermos e mudar cada vez mais nosso cenário.” Camila disse que a edição atual está com um equipe negra, majoritariamente jovem que são de Porto Alegre e que estão atuando no audiovisual. 

Coordenadora da programação do festival, Sofia destacou que o Cinema em Ação tem uma tarefa que é olhar para os profissionais no sentido de pensar uma inserção no mercado audiovisual brasileiro. “Não é uma tarefa simples, não é uma missão qualquer”, frisou, descrevendo a edição atual. Ela destacou que o festival é a primeira iniciativa entre os 26 estados do Brasil a ter uma mostra. “O festival fala muito de inclusão, e a gente precisa e carece de políticas públicas, de ações que venham por parte do governo em suas diferentes esferas que incentivem a produção, e ações formativas.” Ela também explanou sobre o mercado de negócio e trabalho, assim como as conquistas de 2021. 

Na sequência, o homenageado da primeira edição, Sirmar Antunes, entregou o troféu Cinema Negro em Ação a Jeferson De. Em sua fala, Sirmar destacou os 50 anos do 20 de novembro, Dia da Consciência Negra nascida em Porto Alegre, por meio de Oliveira Silveira e demais pensadores. Declamou o poema Sou, de Oliveira Silveira. “Sou a palavra cacimba / pra sede de todo mundo/ e tenho assim minha alma: água limpa e céu no fundo./ Já fui remo, fui enxada / e pedra de construção;/ trilho de estrada-de-ferro,/ lavoura, semente, grão./ Já fui a palavra canga,/ sou hoje a palavra basta./ E vou refugando a manga/ num atropelo de aspa". 


Secretária Beatriz Araújo, Jeferson De e Sirmar Antunes / Foto: Katia Marko

Emocionado Jeferson De lembrou seu contato com os atores, produtores e realizadores gaúchos através do Festival de Gramado, e do acolhimento dos mesmos. “Minha história com o cinema começa nessas terras, nos pampas. Esses homens negros me ajudaram a fazer o meu cinema, me ajudaram ser quem eu sou. Lembro da minha história que começa aqui, eu caipira de Taubaté, do estado de São Paulo, do lado do Sitio do pica-pau amarelo, odiando o Saci Pererê, porque todo ano eu tinha que ser o Saci Pererê na escola, eu queria ser o Sabugosa, a Emília, o Pedrinho, mas era obrigado a ser o saci. E foi com o cinema que eu cresci, tive liberdade. Me sinto muito responsável por gerações de garotas que estão tomando a vanguarda, que estão lá na frente.” Ele dedicou o prêmio ao ator João Acaiabe, que morreu em março deste ano, vítima da covid-19. 

Em sua fala, a secretária da Cultura, Beatriz Araújo, também emocionada, reconheceu a dívida que se tem com os invisíveis da sociedade. “Queremos que vocês tenham vez e voz, e que a partir de políticas públicas e inclusivas nas quais estamos de fato investindo recursos financeiros e afetivos que a gente possa de alguma forma diminuir esse racismo que existe no nosso dia-a-dia, essa falta de respeito com as diferenças, que percebemos em cada momento e lugar que a gente frequenta em nosso estado e tantos outros estados brasileiros”, ressaltou Beatriz. Ela garantiu também que haverá uma terceira edição do festival, ainda maior. 

Durante a coletiva Jeferson falou mais profundamente de sua passagem pelo Festival de Gramado e também do fato de ser homenageado na edição, referenciando o trabalho desenvolvido pela Camila. “Eu vejo muito o que a gente vai ser, em grande parte, essa luz que as mulheres pretas podem lançar. As mulheres são mais de 50% da população e as pessoas pretas mais de 60%. É muito importante que haja um caminho novo no streaming, na TV aberta, e para saber qual será, é bom consultá-las.” 

Confira alguns trechos da entrevista coletiva com Jeferson De.

O que é fazer cinema negro 

Em geral quando a gente vê pessoas pretas no cinema brasileiro, no audiovisual, há algumas características. Primeira delas é que a violência é protagonista. A gente está sempre ligado na questão da violência. A gente sempre é objeto da representação, a gente está sempre em geral em relação à pessoa branca, de representar o povo. Mas eu sempre sinto falta, e é essa visão que eu tenho hoje, de tudo que é dos nosso afetos. Os corpos negros sem serem chicoteados, baleados. Óbvio que isso, infelizmente, faz parte do nosso cotidiano, a violência sobre os corpos negros. Mas eu tento fugir. Quando há uma pessoa negra, mulher, homem, artista negro criando, há um espaço para subjetividade, há um espaço para um lugar onde a gente é sujeito da história, espaço para o silêncio. 

Nós negros não somos iguais, temos diferenças, temos modo de lutar, de conduzir a luta. Isso está em Doutor Gama. Nós pretos não viemos dos mesmos lugares da África, não viemos ao mesmo tempo, não viemos nos mesmos navios e nem fomos para os mesmos lugares. Então de alguma maneira querem nos colocar no mesmo lugarzinho apertado como se a gente fosse igual. Nós pretos estamos no mesmo lugar, do sim senhor, não senhor, da empregada que entra e sai de cena. O que eu tento fazer nos meus filmes é dar profundidade, inclusive à nossa dor. 

Em mais de 100 anos ninguém tinha feito um filme sobre o Luiz Gama, já em relação a Dom Pedro, Tiradentes tem vários filmes. E a nossa história preta está para ser contada, e eu vejo que isso é uma diferença quando nós pretos e pretas estamos nesse lugar. 


"Quando há uma pessoa negra, mulher, homem, artista negro criando há um espaço para subjetividade" / Foto: Katia Marko

20 anos depois do manifesto, Dogma Fejioada e as mudanças no audiovisual

Ficou mais fácil fazer um filme, disponibilizar na rede. 2001, Festival de Gramado, um filme em película era coisa elitista, caríssimo. 21 anos depois ficou muito mais fácil. Mas tem um lugar que é do mainstreaming, das grandes redes, da TV aberta, esse lugar ainda é um lugar do homem branco e ainda é um lugar do homem branco do Rio de Janeiro e São Paulo, e ainda é um lugar do homem branco do RJ e SP rico, e ainda é um lugar do homem branco do RJ, SP, rico e heterossexual. É esse cara que compra e comanda a história. “Ah mas e o Jefferson De?” É exceção, e como eu sou exceção isso é uma vergonha para nosso país. “Ah, mas aquela mulher ali, a Tata Amaral, Luli Gerbase’, é exceção. 

Avançamos muito na questão de raça, de gênero, mas esse lugar do mainstream, dos orçamentos ainda é um lugar para poucos. E muitas vezes não é porque não tem talento, mas porque, o termo que o professor Sílvio de Almeida cunhou, o racismo estrutural, o machismo estrutural é o que não nos deixa avançar mesmo. Não há nenhuma mudança que vai ser feita em relação às mulheres sem a presença feminina. Não há nenhuma mudança em relação a nós pretos e pretas se a gente não estiver presente.

E o que eu vejo é que estamos cada vez mais aumentando essas possibilidades, principalmente porque estamos nos organizando, associações, coletivos, esse momento é um grande momento de estarmos juntos. E como a Camila e a Sofia falaram bem, nossos passos vêm de longe, a gente tem uma história. Uma das coisas que o racismo fez, que a escravidão fez, foi querer cortar a nossa história, temos história sim. 

Filme M-8 - a questão das desigualdades sociais, abordagem policial e afeto 

O filme M-8 é sobre afeto, sobre uma rede que a gente tem, essa rede invisível. Filme que estreou em mais de 100 países. De um negro de periferia, filho de mãe solo, que entra pelas cotas. Um menino que não é militante. E ele tem essa mãe que é frequentadora da Umbanda, e eu falo dessa rede do afeto que se dá pelas religiões de matriz afro, sobretudo na Umbanda e no Candomblé, que são atacadas e combatidas. E esse momento desse policial negro (que em uma cena aborda o personagem central apontando uma arma) que também faz parte dessa rede. E mesmo ele dando a dura ele tem umas palavras de cuidade: "poh neguinho tá andando aqui em bairro de playboy, depois some ai, e vai deixar tua mãe..”. É quase um conselho de irmão mais velho. 

Tem essa contradição, de ele ser um policial, representar a instituição, e tem essa frase de como fosse um irmão mais velho. Todo mundo que veste uma farda, de certa forma não responde mais por si próprio. Ele representa a instituição, ele põe o uniforme e deixa de ser branco, preto, gay, hetero. O que eu percebo é que naquele momento ele deixa passar o afeto dele mesmo sendo policial. Isso importa na minha construção.

Esses filmes que tenho feito não tem sido mais o foco principal o negro em relação a pessoa branca, mas o negro em relação a uma pessoa negra. Acho que essa é uma grande novidade que nós pretos e pretas temos para o mundo: como nós pretos nos relacionamos. Isso é uma novidade para muita gente. Muitas vezes a gente viu na televisão, no cinema pessoas ricas brancas se relacionando com ricas brancas. E a gente mais ou menos entende como vivem milionários no Leblon, mas a gente não sabe exatamente como pretos vivem. 


"Uma das coisas que o racismo fez, que a escravidão fez, foi querer cortar a nossa história, temos história sim" / Foto: Katia Marko

Resgate da representatividade, contribuição e identidade

No Doutor Gama eu vou falar de um intelectual brasileiro, preto. Ai a gente já viu a contribuição preta no futebol, na culinária, na religiosidade popular, no samba, na moda. Mas a gente acha que esse país, republicano de pessoas livres foi construído por homens brancos.  

E eu vou lá fazer um filme sobre Luís Gama, vou fazer dramaturgia, sobre o período da escravidão. Talvez um dos filmes mais ousados, que inclusive tive muito medo de ser mal interpretado. Um filme onde você não tem a violência sobre os corpos negros de uma forma espetacular. É um filme sobre um intelectual negro, que influenciou Rui Barbosa, Raul Pompeia. 

É esse lugar que nos é negado, esse lugar de Lélia Gonzales, que quase ninguém sabe quem é, esse lugar de Sueli Carneiro, esse lugar de Milton Santos. Esse desenho que se fez sobre nós, que Frantz Fanon fala, é um desenho que assim como Fanon, também não aceito. É um desenho que precisa ser construído. O Gama que está na tela é o meu Gama, o genocídio sobre juventude negra é o meu desenho. 

Eu faço parte desse lugar que está brotando, não posso isolar meu filme do Caso do Homem Errado, da Camila, o caso do Homem Errado é o mesmo do protagonista do M-8, é o mesmo personagem, Camila vai para um lado documental e eu para o ficcional. 

Bróder tem a procura da identidade também. Tanto no Bróder quando no Doutor Gama estão procurando a identidade brasileira, dos negros que estão em ambientes urbanos. Dai tu vai falar assim “Ah, como tu tá falando que é uma pessoa negra se o Caio Blat é o protagonista do filme, desde quando ele é negrão". Ai tem essa procura da identidade. Acho que muitos jovens negros que moram na periferia se sentem pretos, cantam rap. Esse lugar que queria explorar. O nome do personagem do Caio Blat no filme é Macum, que é uma referência ao Macunaíma. 

Quem separa quem é preto e quem não é no filme Bróder? Quando eles estão na periferia está tudo bem, quando ele atravessa a periferia para uma zona nobre quem aparece? O Estado brasileiro através da polícia e a policia separa. Você personagem do Caio Blat, você é branco, e vocês dois são pretos.  

Outro ponto. Aproveitando que estou aqui, a História dos Lanceiros Negros, temos que saber, filmar, tem que entender, eu preciso entender como brasileiro. As empresas de streaming tem que lançar um olhar para quem somos, quem fomos, que negro eu sou. Eu nunca vou entender minha imagem corretamente se eu não vejo no cinema isso. 

Todo mundo já ouviu falar do reverendo Martin Luther King, e conhece muito mais do que Luiz Gama, muita gente conhece Malcom X muito mais que Luiz Gama, muita gente conhece mais a história de Angela Davis do que a história do Luiz Gama. 

Recentemente a TV Globo passou o filme durante a madrugada. “A TV aberta ainda é um lugar que temos que conquistar”, afirmou Jeferson. 

Sobre Jeferson De

Natural de Taubaté, interior de São Paulo, Jeferson De é formado em Cinema pela USP, onde foi bolsista da FAPESP com a pesquisa “Diretores Cinematográficos Negros”. É fundador da produtora Buda Filmes. Em 2000, publicou o manifesto Dogma Feijoada, uma análise histórica sobre a produção audiovisual dos negros no Brasil. Dirigiu os curtas Distraída para a Morte (2001), Carolina (2003) e Narciso Rap (2005).

Ainda em 2005, lançou os livros Dogma Feijoada e o Cinema Negro Brasileiro. Jeferson De foi editor e finalizador de projetos na MTV e no SBT. Produziu os programas Brasil Total e Central da Periferia, na TV Globo, e dirigiu os programas Tramavirtual e Conexões Urbanas, no canal Multishow. O primeiro longa-metragem de Jeferson D, Bróder (2010), estreou no Festival de Berlim. 

Jeferson também fez uma série, produzida pelo Sesc - São Paulo, sobre a Revolta dos Malês na Bahia.

Atualmente contratado da Rede Globo de Televisão, Jeferson tem entre suas produções mais recentes o filme M-8, quando a morte socorre a vida, disponível na Netflix, e Doutor Gama, que resgata a história do advogado, jornalista e escritor Luiz Gama (1830 -1882), que lutou incessantemente na defesa dos escravizados.


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Edição: Katia Marko