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EDUCAÇÃO

Artigo | Bolsonaro e a Medida Provisória da Madrugada para o ProUni: a Lei do Boi recauchutada

MP perpetua o acesso desigual dentro do ensino, em especial ao povo negro, descaracterizando o programa na sua essência

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Governo liberou a estudantes de escolas privadas que não contavam com bolsa integral o acesso ao auxílio - Foto: Sam Balye/Unsplash

Em 18 de setembro de 1850, o imperador do Brasil Dom Pedro II assinou a Lei nº 601, conhecida como Lei de Terras, que estabelecia critérios com relação a direitos e deveres dos proprietários de terras, optando, oficialmente, pela divisão da zona rural de todo o território nacional em latifúndios ao invés de pequenas propriedades. O projeto de tal lei foi algo bastante pensado, pois passou por sete anos de debates dentro das casas legislativas.

É importante contextualizar que à época, a economia mundial tomava novos rumos e a modalidade de comércio antes praticada passou a ceder espaço para o capitalismo industrial. Essa movimentação gerava pressões das grandes potências às demais nações para adequação às novas práticas, como foi o caso da pressão da Inglaterra a respeito do fim do tráfico negreiro. A respeito do uso da terra, tais transformações acabaram gerando efeitos sobre a posse de terras, tornando-as símbolo de distinção social.

No Brasil da época, embora sua economia fosse baseada na exportação do café, a zona rural era mal ocupada, mal explorada e poucos proprietários de terras tinham registro de propriedade (o que possuíam documentação eram por conta da doações feitas pelo rei Dom João VI ainda quando do Brasil-Invasão, mas que tinham a exigência de que fossem cultivadas), gerando uma grave instabilidade jurídica entre esses proprietários. Foi então que, após a proibição de doação de novas terras e, curiosamente, duas semanas após a aprovação da Lei Eusébio de Queiroz (Lei nº 581 de 04 de setembro de 1850), estabelecendo medidas de repressão do tráfico de pessoas escravizadas, que a Lei de Terra foi sancionada, a fim de regularizar a questão fundiária e substituir a grande fonte de riqueza que era a escravidão e com isso, viria a escassez de mão-de-obra.

Por isso também, essa lei era uma política pública para incentivar a imigração e tornar ilegais as invasões e ocupação de zonas rurais por ex-escravizados e pequenos posseiros, justamente porque não poderiam arcar com as taxas previstas na nova lei, contribuindo para a concentração fundiária, algo que marca a realidade brasileira desde então.

Costa e Silva, durante o período da ditadura militar brasileira, baseado em sua política desenvolvimentista aliada a interesses ideológicos, editou a primeira lei de cotas brasileira. A Lei nº 5.465 de 3 de julho de 1968, conhecida como Lei do Boi, foi criada para garantir cotas nas universidades públicas para filhos dos grandes fazendeiros. Revogada somente em 1985, tal lei criava privilégios e mantinha a dinâmica estabelecida desde a época da escravidão no país. Ainda que estabelecesse que 50% das vagas fossem reservadas para candidatos agricultores ou filhos destes, fossem proprietários ou não, residentes em zona rural, e que 30% das vagas a agricultores ou seus filhos, também proprietários ou não de terras e residentes em vilas ou cidades que não possuíssem estabelecimentos de ensino médio, isso não significava que o acesso era igualitário, pois somente a elite rural poderia dispor da Senzala trabalhando para manter o patrão ou seus filhos estudando na universidade na cidade grande.

Nessa dinâmica, levando-se em consideração as situações de racismo legalizado no Brasil, como o Decreto nº 1.331 de 17 de fevereiro de 1854, que proibia a admissão de escravizados nas escolas públicas, como o Decreto de 7.031-A, que estabelecia que a população negra somente poderia estudar em horário noturno, além do objetivo das políticas imigratórias, como discorre Abdias do Nascimento (1978: 71), que tratou do desaparecimento do negro por meio da “salvação” que viria através do sangue europeu, alvo que perdurou inclusive durante o século XX, onde teorias pretensamente científicas forneciam suporte ao racismo arianista a fim de erradicar a “mancha negra” da população brasileira, pois se considerava a população brasileira como feia e geneticamente inferior, à população negra foi relegada a formação da população pobre do Brasil, forçando, inclusive, uma nova forma de controle da massa escravizada, a seletividade penal.

É dizer, toda a prática política é voltada para controlar e inviabilizar o existir da população negra com quem a elite branca tinha de conviver, de maneira que o controle social pela criminalização, o extermínio e a política de branqueamento se materializavam também por meio da legislação penal, ao abandono dos grilhões da escravidão estes eram substituídos pelas algemas. Assim, à população negra e pobre, a falta de acesso ao estudo, a falta de acesso à propriedade.

Ao voltarmos os olhos para o Brasil mais recente, o governo federal apresenta no ano de 2003 um projeto de lei que visava a reforma do ensino superior no país que tramitou até o ano de 2006 no Congresso Nacional. As discussões que envolveram o projeto contaram com a participação ativa de movimentos sociais, como a Educafro. A respeito, castro (2005:17) afirma que esse diálogo possibilitou a construção do pensamento de uma agenda que fosse capaz de contemplar a pauta dos movimentos sociais pelo acesso às universidades, como o caso da política de cotas, o ProUni e a expansão do sistema federal de ensino superior.

Vale dizer que apesar de não se tratar de uma movimentação recente, pois já na década de 1930, a Frente Negra Brasileira reivindicava políticas públicas que possibilitassem o acesso da população negra à educação, além de criar escolas comunitárias para crianças negras em algumas regiões do país, o tema ganha protagonismo negro, pois políticas universalistas, afirmadas nas décadas de 1980 e 1990, de acesso à educação não foram capazes de atingir a população negra. Ações afirmativas como as cotas para pessoas negras no ensino superior, o compromisso por estas políticas se convergem ao Estatuto da Promoção da Igualdade Social, firmada pelo Brasil durante a 3ª Conferência Mundial Contra o Racismo, na África do Sul, além dos acordos internacionais celebrados e pressões políticas dos movimentos organizados, que dão conta de apontar o racismo estrutural vivido no país desde a chegada das primeiras pessoas escravizadas das Áfricas.

Através da Lei nº 11.096, de 13 de janeiro de 2005, o governo brasileiro à época instituiu o Programa Universidade Para Todos, o chamado ProUni, que é uma política pública e uma ação afirmativa para democratizar o acesso ao Ensino Superior, visando a reduzir os índices de desigualdade educacional no país. A ideia visa a inclusão do maior número de universidades particulares do país com grande número de vagas ociosas (cerca de 90% versus 10% de vagas nas universidades públicas – dados do Censo do Ensino Superior de 2008 publicado pelo INEP no ano de 2009). A contrapartida era a isenção de impostos para as universidades participantes do programa pela criação de bolsas de estudos para egressos do ensino médio, negros, indígenas, pessoas com deficiência e professores da educação básicas, oriundos da escola pública ou possuidores de bolsa integral em instituições privadas, criando como critério de concessão das bolsas o recebimento de até três salários-mínimos e um bom desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).

Apesar das diversas críticas que se possa fazer ao programa em questão, é necessário reconhecer que se trata de uma estratégia para possibilitar a grupos marcados por carências econômicas e vulnerabilidades sociais, intentando corrigir lacunas deixadas pelas políticas universalistas e pelas desigualdades sociais definidas também pelo racismo. Além disso, é capaz de proporcionar, para além da formação acadêmica, a elevação da autoestima, autoconfiança do jovem, bem como impactar a vida social não só dos estudantes, mas de suas famílias. Como bem ressalta Carvalho (2006: p. 995), o programa traz o benefício simbólico do diploma aqueles que conseguirem permanecer no sistema e, talvez, uma chance real de ascensão social para os que lograram estudar em alguma instituição privada de qualidade.

Essa era a realidade modificada no país até a madrugada do dia 7 de dezembro de 2021, quando o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, realizou alterações no ProUni, excluindo, especificamente, as exigências quanto à origem da escola pública do estudante ou mesmo da fruição de bolsa integral em instituição de ensino particular. A Medida Provisória nº 1.075, permite que alunos que cursaram o ensino médio em escolas particulares sem bolsa de estudos integral tenham acesso ao programa, além de dispensar a necessidade de apresentação de documentos de comprovação da renda familiar e a situação de deficiência do estudante, quando eles já constarem da base de dados do governo federal.

Também foram realizadas alterações na regra de reserva de cotas a candidatos negros, pardos indígenas e pessoas com deficiência, cujo percentual não será mais considerado em conjunto, mas de forma conjunta. Outro ponto, foi a proibição de acumulação de bolsas de estudo do ProUni e a concessão delas para estudantes que já estejam com 75% do curso concluído, boa parte com vigência a partir de 1º de julho de 2022. Em nota, o governo federal afirmou que tais regras ampliariam e melhorariam as políticas de inclusão na educação superior, diminuindo a ociosidade de vagas e promovem a desburocratização.

Entretanto, ao saber do histórico social do acesso à educação no país, resta evidente que as alterações realizadas não são como desenha o governo atual, mas representam um retrocesso na democratização do ensino superior. Ampliam a concorrência de forma desigual e privilegiam, novamente, pessoas que possuem condições de custear seus estudos em detrimento não só dos vulneráveis socialmente, mas especificamente os alijados racialmente.

De fato, existem várias políticas de acesso ao Ensino Superior, em que os benefícios são universalizantes, mas não necessariamente beneficiam a população negra. Especificamente aqui, Adilson dos Santos Júnior, comunicador social, em uma rede social, ressalta que as políticas de inclusão sem recorte racial acabam sempre beneficiando mais aos estudantes brancos do que os estudantes negros e questiona, cotas para estudantes de baixa renda, quem são os que mais possuem condições mesmo entre quem possui baixa renda? Quando se fala de cotas para estudantes de escolas públicas, quem possui melhores condições de ocupar as melhores escolas públicas com ensino mais qualitativo? E quando voltamos os olhos para os programas políticos de ações afirmativas, elas continuam universalizantes, pois o FIES (Fundo de Financiamento Estudantil - criado para financiar a graduação de estudantes matriculados em cursos superiores, desde 1999), não possui diferenciação quanto à raça e etnia. O raciocínio vale também para o ENEM.

Todo esse panorama modificado pela Medida Provisória assinada na madrugada por Jair Bolsonaro, o que faz é resgate da já conhecida Lei do Boi, privilegiando aqueles que foram já beneficiados historicamente pela Lei de Terras, perpetuando o acesso desigual aos espaços sociais, em especial dentro do ensino, descaracterizando o programa na sua essência, cujo debate envolveu tanto da sociedade, promovendo uma concorrência desleal a quem nunca foi dispensado nada além das migalhas da dita democracia racial. A quem é o benefício afinal? A fila destinada ao povo preto no Brasil é sempre a mais longa e a que menos anda, a história se repete, dessa vez com a Lei do Boi recauchutada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Marcia Luiza Pires de; BICCAS, Maurilane de Souza. A escola da frente negra brasileira na cidade de São Paulo (1931-1937). 2008.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

Brasil. INEP. Censo da Educação do Ensino Superior do ano de 2008. Disponível em: https://download.inep.gov.br/download/censo/2008/resumo_tecnico_2008_15_12_09.pdf. Acesso em: 07 de dezembro de 2021.

___. Lei nº 581 de 04 de setembro de 1850.

___. Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850.

___. Lei nº Lei nº 5.465 de 3 de julho de 1968.

___. Lei nº 11.096, de 13 de janeiro de 2005.

___. Lei nº 12.288 de 20 de julho de 2010.

___. INEP. Censo da Educação do Ensino Superior do ano de 2008. Disponível em: https://download.inep.gov.br/download/censo/2008/resumo_tecnico_2008_15_12_09.pdf.. Acesso em: 07 de dezembro de 2021.

CASTRO, Cloves A. Cursinhos alternativos e populares: movimentos territoriais de luta pelo acesso ao ensino público superior no Brasil. 2005. 165f. Dissertação (Mestrado em área de concentração ambiental) – Universidade Estadual Paulista, Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP, Presidente Prudente.

CARVALHO, Cristina Helena Almeida de. O PROUNI no governo Lula e o jogo político em torno do acesso ao ensino superior. Educação & Sociedade [online]. 2006, v. 27, n. 96, pp. 979-1000. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0101-73302006000300016>. Epub 11 Dez 2006. ISSN 1678-4626. Acesso em: 07 de dezembro de 2021.

NASCIMENTO, Abdias do (1978): O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra.

* Monike Santos é mestra em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento, Universidad Pablo de Olavide – Espanha, especialista em Direitos Humanos e Filosofia, PUCPR. Graduada em Direito, FAE – Centro Universitário e Graduanda em Filosofia, UNINTER. Assessora Jurídica do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira