Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | O cenário de fome persistirá em 2022

De olho nas eleições, Bolsonaro enterra programas sociais que atendiam população em vulnerabilidade social

"A única certeza é a falta de prioridade do governo de Jair Bolsonaro para com a agricultura familiar camponesa e o atendimento da população em vulnerabilidade social" - Miguel Schincariol/AFP

O governo federal conquistou o apoio do Congresso Nacional para aprovação da Medida Provisória 1.061/21, que institui o Auxílio Brasil e o Alimenta Brasil, programas que substituem o Bolsa Família e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), respectivamente.

Além disso, mesmo com ajustes, o governo conseguiu aprovar a PEC dos Precatórios, abrindo espaço fiscal que garante a transferência do benefício mensal de 400 reais do Auxílio Brasil. Até mesmo a oposição votou a favor dessa medida, já que, do contrário, corria o risco de ser responsabilizada politicamente pelo governo pelo não pagamento desse benefício.

O único fator relevante anunciado pelo governo de Jair Bolsonaro em relação aos novos programas foi o aumento do benefício mensal para 400 reais, o que pode acabar por escamotear o fato de que o novo desenho institucional representa um retrocesso.

Ao contrário do Bolsa Família, o Auxílio Brasil pulveriza a transferência de renda às famílias, tornando a gestão mais complexa e o controle mais frágil, ampliando os riscos de desvios. Além disso, um dos principais problemas causados pelo governo ao Bolsa Família e ao PAA foi a redução de recursos e, por consequência, do número de famílias atendidas, situação agravada nos novos programas que os substituem.

Em 2019, o governo estabeleceu sucessivos cortes de beneficiários do Bolsa Família, além de suspender novos ingressos, deixando cerca de 1 milhão de famílias em situação de vulnerabilidade social. Essa transição do Bolsa Família para o Auxílio Brasil restringirá ainda mais o número de famílias atendidas. O valor de 400 do Auxílio Brasil, embora seja superior ao benefício do Bolsa Família, é 20% menor que o valor médio do auxílio emergencial pago em 2020  (500 reais) e, segundo o Dieese, representa cerca de 60% do valor da cesta básica na cidade de São Paulo.

Por sua vez, o Alimenta Brasil ainda é uma incógnita, pois depende de regulamentação. A única certeza é a falta de prioridade do governo de Jair Bolsonaro para com a agricultura familiar camponesa e o atendimento da população em vulnerabilidade social.

Em que pese o País ter mais de 19 milhões de pessoas passando fome e o agravamento da insegurança alimentar e nutricional, em decorrência da pandemia, o governo previu no orçamento da União – para 2021 e 2022 – apenas 100 milhões de reais para a aquisição de alimentos. Comparando ao histórico do PAA, desde a sua criação, em 2003, os orçamentos de 2021 e 2022 representam o menor volume ao longo desses últimos 18 anos, equivalendo a 12% do orçamento de 2012, ano de maior execução do PAA. Em 2020, a situação só foi diferente porque o PAA teve uma suplementação de 500 milhões de reais, graças à mobilização de organizações como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), entidades sindicais e movimentos sociais.

Apesar do orçamento para aquisição de alimentos ser baixíssimo para 2022, o governo ampliou o limite de compra do Alimenta Brasil, tanto por família agricultora quanto pelas diferentes modalidades. Essa ampliação representa um crescimento entre 50 e 200% do valor máximo permitido anteriormente. No entanto, ampliar o limite de compra por família agricultora, sem ampliar o orçamento disponível, resultará na redução do número de famílias agricultoras atendidas.

O governo dedicou boa parte do ano para aprovar o Alimenta Brasil, sendo que bastaria ampliar os recursos do PAA e promover o fortalecimento da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que tem capacidade institucional para atender rapidamente centenas de milhares de famílias agricultoras e milhões de famílias em insegurança alimentar e nutricional. Entre 2019 e 2020, a Conab deixou de atender via PAA mais de 200 milhões de reais em projetos de aquisição de alimentos, por falta de alocação de recursos financeiros pelo governo. Em 2021, a execução foi zero. Há dois meses a Conab lançou um novo edital do PAA, recebeu cerca de 320 milhões de reais em projetos, mas até agora os projetos não foram contratados e, por enquanto, o orçamento disponível à Conab para aquisição de alimentos, cerca de 13,5 milhões, vem de emendas parlamentares, representando apenas 4% da demanda recebida nesse recente edital do PAA.

O desmonte promovido pelo governo Bolsonaro não se restringe ao PAA e ao Bolsa Família. Somam-se a isso, o esvaziamento da política dos estoques públicos e da Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM), instrumentos de fomento à produção de alimentos básicos e que poderiam contribuir para o controle da inflação. Além disso, houve a desconstrução do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e de um conjunto de programas de fortalecimento da agricultura familiar camponesa, tais como, os programas de infraestrutura hídrica, implementados pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), e o Ecoforte, implementado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e pela Fundação Banco do Brasil, em parceria com a Articulação Nacional de Agroecologia.

Assim, em vez de debater uma política nacional de abastecimento, da qual o PAA fosse parte integrante, observamos a desconstrução de programas que contribuíram para significativas transformações sociais, por meio da transferência de renda, fomento à produção e garantia da comercialização de alimentos, promoção da agrobiodiversidade, valorização da cultura alimentar regional e o combate à fome.

Resolvida a questão emergencial, garantindo que cidadãs e cidadãos saiam das filas do osso e do lixo e passem a se alimentar, é necessário pensar no tipo de alimentação que a população brasileira está consumindo. É preciso fazer do Guia Alimentar para a População Brasileira a referência para construir alternativas, em direção à alimentação saudável e a partir de sistemas de produção diversificados; promover mudanças na estrutura agrária, visando a desconcentração fundiária; assegurar que indígenas e comunidades tradicionais possam ter suas terras e territórios regularizados. Por fim, que a agricultura familiar camponesa, sobretudo a juventude rural, seja fortalecida, garantindo uma agricultura com gente e promotora da biodiversidade, de uma alimentação diversificada e de qualidade. A agroecologia é a base para isso.

* Silvio Porto é professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), coordenador do Nucampo e ex-diretor da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Carta Capital