Paraíba

ENTREVISTA

Coordenação do MST Paraíba fala da luta do movimento, que completa 38 anos de fundação

“A gente só elimina a fome por meio da reforma agrária massiva, com desapropriação de terra”, diz Gilmar Felipe Vicente

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |

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Gilmar Felipe Vicente, no Encontro Estadual da Militância, que aconteceu em Lagoa Seca/PB, em dezembro de 2021. - Foto: Acervo pessoal.

Neste sábado (22), faz 38 anos de fundação do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A fundação ocorreu durante o 1º Encontro Nacional, realizado em Cascavel/PR, entre os dias 20 e 22 de janeiro de 1984. O MST está organizado em 24 estados do país. Segundo o movimento, são cerca de 450 mil famílias assentadas que conquistaram a terra por meio da luta e organização dos trabalhadores rurais e mais 90 mil famílias acampadas.  Através do método cubano “Sim, eu posso” e do educador Paulo Freire, o MST já alfabetizou mais de 100 mil pessoas. Na Paraíba, o MST também tem uma longa história de atuação, começando sua articulação a partir de 1985.

Para conversar sobre a história de luta do MST, o programa Paraíba de Fato conversou com Gilmar Felipe Vicente, agricultor do Assentamento 1º de março, localizado município de Pitimbu/PB e integrante da Coordenação Estadual do MST/PB. Confira a entrevista completa:

Carolina Ferreira (BdF/PB): A fundação do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra aconteceu em 22 de janeiro de 1984. Aqui na Paraíba, a articulação do movimento começou em 1985. Desde lá, quais as principais pautas que promoveram o nascimento e ainda promovem a permanência do MST?

Gilmar Felipe Vicente: O MST tem, como luta estruturante, a luta pela terra, ela é aquilo que nos moveu a nascer, a surgir e, consequentemente, como resultado dessa luta pela terra, a luta pela reforma agrária, que é um processo que vai além da luta pela terra e incorpora várias outras pautas. Então, o MST na Paraíba não foi diferente. O intuito foi organizar os trabalhadores e trabalhadoras sem terra na perspectiva de conquista de suas terras, dos lugares que lutavam. Posteriormente, trazemos a pauta da reforma agrária como centralidade. E por que a reforma agrária? Dentro da reforma agrária, aprofundamos outras pautas que são interessantes. Algumas vêm já no começo e outras vieram com o tempo e estão incorporadas até hoje, por exemplo, a luta por moradia, a luta por estradas, por infraestrutura para os assentamentos, por agroindústria, a luta por implementos agrícolas, a luta por crédito de melhor qualidade, cada vez mais subsidiados, para que as famílias, a partir da conquista da terra, consigam investir no seu processo produtivo. É importante também dizer que outras lutas ganham muita força dentro desse processo, como a luta pela educação, que se transforma em uma centralidade; a luta pela educação do campo com uma pedagogia específica; a luta por uma saúde popular, que dialogue com outras dimensões da vida e da saúde humana, que não seja essa do mercado; o debate de gênero; a construção de um novo debate cultural e a recuperação de valores, costumes. E, mais recente, trazemos o debate da agroecologia, pauta fundamental para dialogar com as questões do nosso tempo, a questão da produção de alimento, de uma nova relação com a natureza. Enfim, foram pautas essas que que acompanham o MST desde o seu surgimento.

Na Paraíba, há os assentamentos e a produção agroecológica das famílias assentadas do MST. Existe o exemplo do cuscuz, que será feito com sementes livres de transgênicos. Você poderia falar um pouco dessa experiência?

Então, a discussão da agroecologia e da produção agroecológica tem sido um debate central, não só do MST, mas também das organizações do campo nesse período histórico. Esse debate ganha força, principalmente, quando pensamos em produzir alimentos saudáveis, para que a população possa comer e comer para viver, não para morrer, que é isso que o agronegócio faz, produz mercadorias e bota nas prateleiras do supermercado, onde só tem veneno, transgênico e leva para a população, que cada vez mais tem adoecido pela comida que come. A gente poder trazer uma nova possibilidade de colocar comida na mesa das pessoas através de uma produção agroecológica e orgânica e que vem, implícito nesses alimentos, novas relações humanas, igualdade de gênero, relação equilibrada com a natureza, respeito à vida, é muito importante. O MST tenta construir, a partir dos seus assentamentos, dos territórios conquistados, o processo de produção agroecológica. Nesse sentido, veio o debate do milho que produzimos nos assentamentos, principalmente, no semiárido, na região do Curimataú, Cariri, sertão. Iniciamos esse novo processo de pegar o milho que produzimos, livre de transgênico e usar para produzir um cuscuz, uma comida popular na mesa de todo mundo, da população paraibana, brasileira e nordestina, principalmente. É importante dizer que, essa não é uma inciativa apenas do MST. Na Paraíba, tem o exemplo da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Assim, hoje já existe o flocão da paixão sendo comercializado. Em breve, nós vamos lançar o nosso da reforma agrária, que é esse cuscuz que vem da resistência do povo camponês, que vem das lutas de Margarida Maria Alves, de João Pedro Teixeira, vem tudo simbolizado nessa comida nordestina. Esperamos que, em breve, o cuscuz da reforma agrária popular esteja também por aí. Hoje, boa parte do nosso milho está concentrado no Assentamento Che Guevara, em Casserengue/PB, que tem produzido bastante milho livre de transgênico, com testes e tudo mais. 

Diversas ações do MST agem para a mudança de consciência, como também com o objetivo de contribuir para a melhora da alimentação da população, ainda mais nesses tempos de aumento da fome. A Cesta Produtos Terra Boa, uma iniciativa do MST aqui no estado, acaba sendo um modo das famílias terem renda e contribuir com uma alimentação saudável e livre de agrotóxicos para a população. Como o movimento vê o combate a fome através da alimentação saudável?

A gente vive um período histórico, em que um dos elementos que foi escancarado, tomando conta da população mais pobre, foi a fome. A única forma de acabarmos com ela, é distribuir terra, a fim de que o povo possa produzir comida. A gente só elimina a fome por meio da reforma agrária massiva, com investimentos, com desapropriação de terra, para podermos produzir alimento. Mas, é qualquer alimento? Não, temos que produzir um alimento que dê vida ao povo, que dê saúde. E aí, a gente promove esses espaços de comercialização, como o exemplo dos Produtos Terra Boa. Com eles, temos apenas atingindo uma pequena parcela da população. Apesar de nossa produção chegar na população de forma massiva, ela não chega levada pela gente, tem atravessador no meio, que compra a produção dos assentamentos. Mas, nós do MST, estamos buscando construir possibilidades e alternativas, a partir das cooperativas das nossas entidades, para ter um processo de comercialização que consiga chegar no povo. Esse é um desafio do nosso tempo. Desafio esse dos movimentos que constroem a luta pela terra, que constroem a agroecologia, que buscam produzir alimentos saudáveis para a população. O objetivo é que a gente consiga, com nosso alimento, combater a fome, que toma conta desse país, na verdade, que toma conta do mundo, por essa desigualdade que o capital promove. Essa desigualdade gera fome, desemprego, miséria. Tentamos construir esse processo. Primeiro que produzir um alimento saudável, não é produzir qualquer alimento, a gente tem que levar para população um alimento de qualidade, livre de veneno, livre de exploração humana, livre de violência. O saudável não é caracterizado apenas pela eliminação do agrotóxico, ele se torna saudável quando o é para quem come e para quem produz, possibilitando construir uma nova relação que não destrua a natureza e conserve a nossa diversidade. O MST, junto com vários movimentos que compõem a via campesina e outros movimentos do campo, busca construir um processo de produção massiva, de produzir alimento saudável. Só vamos combater a fome, se a gente conseguir ter um processo massivo de produção e, só temos produção com distribuição de terra, desapropriação de terra e execução e implantação da reforma agrária.

Muitas vezes, o MST é retratado de forma negativa nas mídias, principalmente, quando se fala do direito à terra. É usado o termo “invasão” para negativar quando as pessoas ocupam uma determinada terra. Entretanto, sabemos da questão da pauta da reforma agrária e da concentração de terra no Brasil. Com relação a esse tema, qual a situação atual no estado da Paraíba?

A situação hoje, no nosso país, está muito difícil. Temos, após o golpe, de 2016 para cá, um movimento de destruição das instituições do estado, que cuidavam da reforma agrária. Acaba o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), coloca o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para dentro do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que só se preocupa com o agronegócio. O agronegócio se transforma na política agrícola brasileira, então, você não tem espaço para a reforma agrária. Até mesmo porque, ambos os governos após o golpe, são contra, radicalmente, o MST e movimentos sociais do campo e, consequentemente, contra a reforma agrária, uma vez que isso implica dizer que tem que distribuir terra, tem que desapropriar o latifúndio. Sabemos que esses são os seus aliados principais. Sendo assim, a situação do estado da Paraíba, reflete a situação nacional, mesmo tendo um esforço, uma abertura para a gente dialogar com o governo do estado, em relação aos conflitos pela terra, às problemáticas dos assentamentos, da comercialização e desapropriação de terra, a gente sabe que o governo estadual sem o apoio do governo federal, não vai conseguir fazer muita coisa. Então, assim, a gente aqui no estado da Paraíba vive uma estagnação das políticas públicas, não temos mais desapropriação de terra. As terras que conseguimos assentar famílias foram pertencentes ao estado, que repassa para famílias e o Incra apenas homologa. Entretanto, não é possível dizer temos uma política de reforma agrária, tanto a nível nacional quanto a nível estadual. O que temos é diálogo com parceiros, com pessoas, com o próprio governo, em uma tentativa de criar possibilidades que venham dar visibilidade ao processo de produção dos assentamentos, de comercialização. Mas, a reforma agrária, de pensar a desapropriação da terra, obtenção de terra, está parada. A gente espera melhorar nos próximos períodos, pois o que temos são muitas famílias acampadas em territórios com emissão de posse; os assentamentos em um nível de pobreza profunda, como os que estão em regiões com mais dificuldades de produzir, especialmente, os que estão no semiárido. Estamos vivendo um tempo bem delicado. No entanto, é sempre importante afirmar que quem vive e constrói a luta, não pode ter tempo ruim. As dificuldades têm que ser o combustível para permanecer lutando cada dia mais, para gente conquistar a dignidade do nosso povo. 

O ano de 2022 está apenas começando. Quais serão as principais atividades do MST Paraíba ao longo do ano?

No nosso país, este ano vai ser decisivo em vários aspectos. A Paraíba tem que se inserir nesse cenário de luta. Em 2022, uma das principais atividades do MST é permanecer mobilizado na luta contra Bolsonaro, pelo Fora Bolsonaro, se inserindo na luta com os outros povos e movimentos. Sabemos que é uma tarefa política de 2022, elegermos o companheiro Lula. Fazer reforma agrária só se faz com o apoio, investimento e decisão do Estado de desapropriar terra. Ainda acreditamos que o Partido dos Trabalhadores (PT) tenha esse compromisso com a população brasileira. Outra coisa é permanecer construindo as cozinhas solidárias que temos nos municípios da Paraíba, como em Campina Grande, Bayeux, Alhandra, Mari, Pedras de Fogo. Queremos continuar fortalecendo essa ação de levar comida para o povo; continuar produzindo nos acampamentos e assentamentos, para podermos levar para a cidade e alimentar a população. Essa questão do alimento é uma atividade central de 2022, porque a fome vai crescer. Nós do MST, dos movimentos sociais do campo, temos essa tarefa de produzir alimento para levar à periferia, a fim de garantir que a gente sobreviva e se organize para fazer luta e enfrentar este momento histórico; Continuar lutando todos os dias por uma educação diferente, por saúde popular; E uma ação que fazemos, desde o início da pandemia e vamos continuar este ano, é a questão dos agentes populares de saúde no campo, mas também fortalecendo as organizações da cidade. São muitas atividades, citei algumas que fazem parte da nossa rotina de luta. E dizer que para o MST, esse movimento que desde 1984 vem produzindo dignidade humana e lutando por justiça social, a pauta que tem permitido o povo ter direito é a luta pela reforma agrária e é isso que vamos permanecer lutando, por políticas públicas para os assentamentos, política de comercialização, para que as nossas famílias tenham melhores condições de viver no campo e de melhorar de vida e ter renda. Essa é a tarefa do MST e continuaremos firmes na luta, junto com todos os companheiros e companheiras que sempre estiveram de mãos dadas. Vamos em frente, lutar e construir a reforma agrária popular todos os dias. 

Edição: Heloisa de Sousa