Rio Grande do Sul

Coluna

E se Moïse Kabamgabe fosse um jovem branco e imigrante europeu?

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Congoleses refugiados em um Brasil colonial e racista não encontram a segurança que procuram - Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Vidas negras brasileiras e migrantes importam

Mais um caso brutal com um jovem negro imigrante é realizado no Brasil. Desta vez, a vítima foi o congolês Moïse Kabamgabe, que chegou ao Brasil em 2011 junto com seus três irmãos. Eles vieram em busca de segurança, em razão do conflito entre as etnias Hema e Lendu na República Democrática do Congo. No entanto, em um país tão colonial e racista como no Brasil, falar em segurança para jovens negros, sobretudo, imigrantes, ainda é uma realidade não conquistada. Moises levou ao menos 30 pauladas, após cobrar seu salário atrasado em um quiosque na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. E se Moises fosse um jovem branco e europeu, seria tratado com tamanha crueldade? Ele receberia o menor salário em comparação aos seus demais colegas como seus parentes declaram?

Como a realidade explícita aos nossos olhos não é suficiente para muitos, vamos utilizar as teorias científicas para responder tal questão. Uma delas bastante oportuna é o pós-colonialismo, que aborda as heranças coloniais nas sociedades. Para esta teoria, de modo geral, o colonialismo, conjuntamente com o racismo, criam estereótipos pejorativos (violentos, preguiçosos, incivilizados) que desumanizam e legitimam diariamente a morte da população negra. Os discursos de combate ao inimigo interno e a construção racista de “suspeito padrão” são criados na base destes estereótipos aos sujeitos subalternos.

Ao mesmo tempo, o racismo cria formas distintas de violências, até porque ele por si só já é uma violência, resultando em mortes, seja por armas, espancamentos como este ou seja pela falta de políticas públicas. Um exemplo apropriado é a situação econômica ainda mais precarizada dos imigrantes após a pandemia do coronavírus. Muitos perderam empregos e, sem serem incluídos nas políticas públicas, não tiveram acesso ao auxílio e medidas emergenciais.

Essa interação entre o Estado e violência é mobilizada por meio do conceito de necropolítica, tendo em vista que sem o aparelho do Estado não seria possível executar o racismo estrutural e, pressupostamente, institucional. Este conceito foi desenvolvido pelo teórico camaronês Achille Mbembe, conquistou uma grande notoriedade acadêmica, e vem servindo de aliado na denúncia do racismo e das suas violências. Mbembe discorre sobre como o Estado está empenhado em gestionar uma política de morte às populações negras e pobres, uma vez que “[...] a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder”.

Desta forma, utilizando o conceito de biopolítica de Michel Foucault, enfatiza que ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação do poder. Se antes o Estado tinha preocupação na manutenção da vida, hoje ele tem preocupação em gestionar/promover a morte. As favelas, os subúrbios, os guetos; formados em maioria pela população imigrante, negra e pobre,  neste sentido, seriam lugares de normalização do Estado de exceção, no qual seria permitido executar uma política da morte, que, em última instância, tem a raça como fundamento. Portanto, se no passado a biopolítica dos Estados era “fazer morrer, deixar viver”, contemporaneamente, ela se insere na lógica “deixar viver, fazer morrer” a partir da falta, por exemplo, de promoção à provimento de políticas públicas afirmativas e de refúgio, específicas e eficazes contra a violência. Ou seja, “se a população negra não morre pela bala, morre pela falta de políticas públicas”.

O Brasil é um país que ainda acumula muitos valores coloniais, de prestígio à cultura europeia, barbárie, racismo e ódio ao povo racializado. Portanto, se Kabamgabe fosse um imigrante europeu, provavelmente não receberia o menor salário em relação aos seus demais colegas, inclusive, sua presença poderia ser de prestígio social ao quiosque. Possivelmente também não teria sido morto de forma covarde e desumana. Para que o Brasil seja um país seguro para a população negra e migrante, é preciso que tais grupos não somente tenham acesso ao território brasileiro, mas também às oportunidades de ascensão econômica, por meio de trabalho, educação e saúde. O enfrentamento real ao racismo e ao legado colonial precisa continuar sendo o centro de um novo projeto de país. Vidas negras brasileiras e migrantes importam.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-edições, 2018.

ALESSANDRINI, A. C. Chapter 22 – Humanism in Questions: Fanon and Said. In: Schwarz, Henry, e Sangeeta Ray (Eds). A Companion to Postcolonial Studies. John Wiley & Sons, 2008. (431-450).

BERNARDINO, Joaze. “Ação afirmativa e a rediscussão do mito da democracia racial no Brasil”. Estud. afro-asiát., Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, 2002.

BHABHA, Homi K. 1998. O local da cultura. Ed. UFMG.Capítulo III – A Outra Questão. O Estereótipo, a Discriminação e o Discurso do Colonialismo.(105-128).

COSTA, Sérgio. Dois atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira