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Libertadores do América

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Pelo menos nos 90 minutos e entre as quatro linhas esperamos conseguir acreditar que o dinheiro não reina sozinho - Foto: Mourão Panda / América
Em tempos de clube-empresa e de futebol moderno, preservar a emoção é algo indispensável

A quarta-feira, 23 de fevereiro, foi um dia histórico na vida do América. Pela primeira vez, o clube disputou uma partida da Libertadores. Mais que isso: nunca antes em sua história de 109 anos havia o América se classificado para participar de um torneio internacional oficial de futebol. O placar já é conhecido, vitória de 1 a 0 do Guarani. A derrota foi frustrante, sobretudo porque o coelho jogou bonito e não foi pouco. Ainda há esperanças para o jogo da volta.

Assisti o jogo in loco, na Arena Independência, portão 6. Expectativa antes e muita emoção durante a partida. Em razão de todo esse entusiasmo, quis escrever este texto em homenagem a uma pessoa que gostaria e merecia ter assistido o jogo com a nação americana e comigo.

Otavio foi para mim a maior referência de América – e de muitas outras coisas. Desde pequena, eu o acompanhava nos jogos do coelho aos domingos e brincava com outras crianças nas arquibancadas beirando a grade. Duas companhias frequentes eram meu irmão André e meu tio Luiz. No intervalo, a trupe circundava a ferradura e trocava de lado, da Pitangui para Ismênia ou vice-versa, a depender do sentido que atacava o time. Me recordo bem de uma época em que acontecia uma espécie de gincana nos 15 minutos do intervalo. Ao entrar no estádio, a gente ganhava um papelzinho com um número, os sorteados tinham a chance de ganhar prêmios se conseguissem meter a bola no gol (sem goleiro) com apenas um chute desde o meio de campo. Foram pouquíssimas as vezes que vi alguém acertar.

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Dos muitos jogos que fui com meu pai, talvez o mais marcante tenha sido a conquista da série B em 1997, com parte da torcida atravessando o gramado de joelhos. A despedida do antigo Independência com a conquista da C em 2009 também foi especial. Arquibancadas lotadas, muita gente conhecida, dia de festa e uma certa melancolia nostálgica do estádio construído para o Mundial de 1950 que logo se transformaria em mais uma 'arena' do futebol moderno. Fui ao jogo da despedida e fui também na reinauguração da Arena Independência em 2012. Eu e André assistimos a vitória por 2 a 1 sobre o Argentinos Juniors desde o setor da Ismênia. Já não era mais possível percorrer a ferradura no intervalo – ela não existia mais.

Confesso que ainda me bate aquela saudade da arquibancada cimentada verde e branca. Em parte, são os ônus do futebol moderno. Porém, reconheço a importância de um estádio mais seguro, acessível e com banheiros mais limpos e organizados. Segurança, acessibilidade e higiene importam muito para nós mulheres, para crianças e pessoas com deficiência – mas não só. Melhoram o espaço para todas as pessoas.

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O desafio é ter um estádio acolhedor sem perder o encanto do futebol, sem encarecer os ingressos, sem elitizar o público. Afinal, tem coisa melhor e mais democrática do que se misturar na diversidade da torcida? Ao contrário do que diz o próprio hino do América, não queremos ver ali uma "classe aristocrata", mas avacoelhadas e avacoelhados de todo tipo. De preferência com espírito popular e consciência de classe. Cabe aqui um viva às bandeiras alviverdes em homenagem ao Lula e à Marielle que tremulam em alguns jogos.

Parte do meu carinho com o América vem do fato de que foi ali que conheci os usos e os costumes do futebol. A celebração coletiva do gol; o sorriso do correligionário vizinho; o cuidado com as crianças; a presença das mulheres naquele território tão machista (viva Zuzu e toda a "sua torcida feminina [que] é demais"); os xingamentos muitas vezes desproporcionais ao juiz e aos adversários; os cornetas sempre insatisfeitos; e os radinhos que aguardam a confirmação do que se vê em campo.

Tudo isso vivi e aprendi com meu pai ali ao lado – com exceção dos xingamentos, pois ele muito raramente se exaltava com qualquer coisa ou pessoa. Também por isso, o Independência e o América me trazem tantas boas lembranças. Também por isso gosto de ir aos jogos, de lembrar, de viver esses pedacinhos da vida com a alegria mais sincera que só o esporte nos proporciona.

Foi mais ou menos isso que senti na partida contra o Grêmio em 2021. Vitória de 3 a 1 do América, minha volta ao campo desde o início da pandemia. Ver a torcida ali nas imediações do bar da Sandrinha, pessoas felizes juntas. Foi de uma emoção profunda. E de uma saudade sem tamanho do Otavio.

De certa forma, Otavio estava ali no jogo da Libertadores. Assim como várias outras famílias, eu e André levamos sua foto, um presente da querida amiga Lúcia Pinheiro. Me recordo que em 2018, embora tenha sido rebaixado da A para a B, em algum momento do campeonato, o América havia chegado a sonhar com uma vaga na Libertadores. Otavio, André e eu fizemos planos de viajar pela América do Sul para assistir a pelo menos um dos jogos. Quem sabe eu e André ainda teremos essa chance.

Para você que chegou até aqui, não sei se importa saber, sou cruzeirense. Escolhi o time celeste aos sete, oito anos de idade sem nenhuma influência familiar (sou a única cruzeirense da família). Otavio também me levava ao Mineirão, eu podia escolher um ou dois jogos no ano. Da mesma forma que eu me alegrava com as vitórias do coelho, ele também torcia pelo Cruzeiro. Fosse para ver sua filha feliz, fosse porque apreciava o bom futebol.

Em tempos de clube-empresa e de futebol moderno, preservar a emoção é algo indispensável. Pelo menos nos 90 minutos e entre as quatro linhas esperamos conseguir acreditar que o dinheiro não reina sozinho. Com esse espírito, quero acreditar que o "L" do América na Libertadores seja um anúncio para 2022. Que a alegria da torcida americana seja um prenúncio do Brasil Feliz de Novo para todos nós.

 

Luiza Dulci é economista e doutora em sociologia. Integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo e constrói o Movimento Bem Viver MG

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Larissa Costa