Minas Gerais

Coluna

Feminismo que queremos: reflexões a partir da assessoria jurídica popular

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"Precisamos nos engajar em práticas feministas que sejam, de fato, populares e decoloniais" - Foto: Claudia Roquette-Pinto
Se territórios são invadidos, são as mulheres que ficam mais restritas

Neste Dia Internacional da Mulher, o Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular inaugura esta coluna mensal no Brasil de Fato MG, trazendo para o debate público diversos temas ligados ao campo da assessoria jurídica popular e à nossa atuação. Com a estreia desta coluna acontecendo no 8 de março, não podíamos nos furtar de evidenciar a luta das mulheres contra o patriarcado e por justiça de gênero.

A necessidade de construir um feminismo interseccional tem sido reconhecida e amplamente falada nos últimos anos. E é assim que nós e diversos movimentos e coletivos feministas têm pautado sua teoria e prática. Porém, é importante aprofundarmos essa discussão, para que ela não se restrinja a discursos vazios ou à armadilha da representatividade pura.

Assumir uma postura feminista e antirracista significa não homogeneizar a comunidade

Pautar o feminismo interseccional no trabalho de assessoria jurídica popular significa, no mínimo: atuar e construir em parceria com as mulheres que estão no centro dos conflitos, reconhecendo seus saberes, seu capital político e seu potencial transformador; e se orientar pela partilha do protagonismo na elaboração das estratégias jurídico-políticas.

Conflitos socioambientais e penalização das mulheres

Ao enfrentar um conflito socioambiental, por exemplo, é essencial compreender quais são os seus impactos para as mulheres e para todas as etnias nele envolvidas. Somente após perceber o papel desses grupos no contexto que está sendo alterado, é que se deve planejar e realizar qualquer enfrentamento.

Seja em trabalhos de prevenção de danos ambientais, já no processo de reparação ou no dia a dia da assessoria jurídica popular, quando atuamos em defesa de uma coletividade, assumir uma postura feminista e antirracista significa também não homogeneizar esse grupo. Ou seja, é fundamental assimilar que na coletividade sempre existirão desigualdades raciais, étnicas, de gênero e de sexualidades.

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A prática, porém, tem sido outra. Se estamos ainda engatinhando no sentindo de incorporar as dimensões do racismo ambiental na nossa práxis, olhar para a forma com que as injustiças ambientais e climáticas atingem especificamente as mulheres é um movimento ainda mais recente. Justamente pela desigualdade de gênero, os danos causados a elas sequer são considerados ao enfrentar essas questões.

Contudo, se os territórios são invadidos, são as mulheres que ficam restritas cada vez mais ao interior das casas e ao trabalho doméstico “improdutivo”. Se as hortas são contaminadas e a produção de subsistência familiar é inviabilizada, são as mulheres que perdem poder econômico. Se passa a ser impossível produzir no território e os homens têm que migrar em busca de trabalho, são as mulheres que se tornam dependentes economicamente, intensificando a desigualdade de gênero na família. Para além desses exemplos, a situação é mais grave quando tratamos de famílias monoparentais, não-heteronormativas ou de comunidades tradicionais.

Práticas feministas e populares

Se pretendemos resistir da lógica predatória, que visa ao lucro colonialista da terra, precisamos relembrar que a posição do colonizador é também uma visão masculina ou masculinizada. Quando pretendemos discutir, por outro lado, a performance de gênero e as injustiças que o patriarcado impõe às mulheres, precisamos ouvir as mulheres latino-americanas - sobretudo as indígenas e as afro-caribenhas, que reclamam há séculos que o corpo é o primeiro território das mulheres e que é impossível olhar para um sem se lembrar do outro.

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Precisamos, portanto, nos engajar em práticas feministas que sejam, de fato, populares e decoloniais. Juliana Paredes, liderança aimara da Bolívia, frequentemente diz que apenas uma perspectiva comunitária do feminismo é capaz de enfrentar o neoliberalismo, uma vez que o machismo, o racismo e a LGBTQfobia foram trazidos pela colonização e reiterados pela colonialidade, exigindo, portanto, um caminhar conjunto entre homens e mulheres para sua superação.

Não se trata, porém, de ignorar as opressões que existem dentro dos grupos vulnerabilizados sob a desculpa de uma unidade na luta. Trata-se da necessidade de adotar uma práxis feminista consoante com os elementos de cada situação concreta, respeitando os costumes e a forma tradicional de organização política das mulheres naquele contexto. Assim, conseguimos garantir equidade para as lutas externas, que é um desafio constante e condição para que a assessoria jurídica seja efetivamente popular.

Caminho de mão dupla

Um caminho de mão dupla: acrescentar nos debates da justiça socioambiental a perspectiva das mulheres e, de outro lado, construir um feminismo onde caibam todas as mulheres, dos mais diversos corpos, sexualidades, povos e etnias.

A grande lição vem, portanto, das mulheres indígenas, quilombolas, camponesas, negras, brasileiras e latino-americanas, que nos ensinam que combater o neoliberalismo do Norte Global requer uma participação ativa das mulheres e de seus conhecimentos tradicionais. E é aqui que posicionamos a assessoria jurídica popular e as práticas feministas que queremos.

 

Carolina Spyer, Larissa Vieira e Lethicia Reis são do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular (CMA), uma organização antirracista, anticapitalista e feminista, que presta assessoria jurídica popular a diversos grupos no campo e na cidade

 

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

 

 

Edição: Elis Almeida