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200 anos de que? Os brasileiros, sem dinheiro no banco e parentes importantes

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Atualmente, sob a égide do "a mamata vai acabar", vimos um emparelhamento digno dos primórdios coloniais - Foto: Reprodução
Com a criação do governo geral permaneceram as redes de sociabilidade e prestígio

No álbum Baihuno, lançado em 1993, Belchior traz uma profunda reflexão sobre o Brasil, um ano após a “descoberta” da América (1492) ter completado quinhentos anos. A música 500 anos de que? é uma crítica à colonização, a dominação dos corpos, mentes e pensamento, como dizia: "deploro essa herança na língua que me deram eles, afinal”. 

No álbum de 1976, Alucinação, considerado um dos mais importantes da música brasileira, o compositor se declarava um "Rapaz latino americano, sem dinheiro no banco e sem parentes importantes”.

Nós, "sem parentes importantes", nos vimos a mercê de um coronelismo

O músico, que já cantou também o "cordial brasileiro", nos leva a questionar sobre a formação do país e a consolidação de algumas estruturas que permanecem até os dias atuais. Migrante nordestino, que caiu no "sul, grande cidade", imagino esse "sujeito de sorte" sentindo na pele o peso das relações pautadas em conchavos, apadrinhamentos e indicações políticas típicas do que se pode definir como "coronelismo", ou, sociabilidade entre a “boa sociedade” etc. 

Indicação de nomes: estratégia de manutenção do poder

Independente do nome ou conceito para cada território e contexto, é certo que a prática de indicação de nomes entre grupos como estratégia para manutenção do poder é uma estrutura que perdurou no Brasil e tornou-se uma marca indubitavelmente cotidiana.  

Desde o período colonial que as indicações para gerirem as capitanias foram pautadas na posição social e relações na Corte portuguesa. Com a criação do governo geral, permaneceram as redes de sociabilidade em que tudo era busca por honra e prestígio, e tudo passava por ser um fiel vassalo, afinal, era a assim que se conseguia as mercês em forma de sesmarias e cargos administrativos. Já no Império, com o país independente, os cargos públicos, oriundos do Estado, eram, também e principalmente, distribuídos entre a elite política e econômica brasileira, que passou a receber diversos títulos nobiliários, uma chuva de barões, condes e viscondes tropicais. 

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No caso da profissão docente, os concursos públicos para contratação de professores/as foram uma conquista docente importante, mesmo com toda força contrária de políticos do Estado, que mantinham suas influências justamente nas indicações às cadeiras de ensino para atuarem em diversos municípios. 

Retomo Belchior, especificamente quando ele dizia na música fotografia 3X4 "eu sou como você", neste caso, que me lê agora, para questioná-los sobre a importância de, nesses 200 anos de independência, refletirmos sobre a necessidade de conquistarmos a independência institucional. 

Independência institucional

Tivemos a partir da constituição de 1988, um grande debate sobre a importância de fortalecermos as instituições democráticas, fortalecer e conquistar políticas de Estado permanentes, longe das influências casuais e de oportunismos. Foram as lutas dos movimentos sociais que garantiram direitos para grupos específicos, como os indígenas, que veem agora seus territórios invadidos por garimpeiros ilegais acobertados pela estrutura de Estado e governo. 

Atualmente, sob a égide do "a mamata vai acabar" vimos um emparelhamento digno dos primórdios coloniais, uma quebra dos acordos nas listas de indicações aos cargos de direções em algumas instituições, como é o caso das universidades, indicações e mudanças de chefias a revelia e a mercê de interesses pessoais e de grupos que negociam livre e abertamente cargos, ministérios, empresas estatais e territórios públicos antes protegidos por lei. 

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É consenso entre qualquer ser pensante e que detenha o mínimo de conhecimento dos fatos que um dos grandes problemas do Brasil, e que foi exacerbado nos últimos anos, é a não institucionalização de setores estratégicos na garantia da vida dos que mais dependem do Estado.

Enquanto isso, nós, "sem parentes importantes", nos vimos a mercê de um coronelismo do século XXI, sem a garantia do cumprimento dos preceitos estabelecidos em acordos oriundos de muita luta e pressão de movimentos sociais, o que nos possibilitou a conquista de direitos sociais imprescindíveis. 

200 anos de que?

A pergunta que intitula esse texto é uma provocação. 200 anos de que? De muita resistência, sim! De muita luta, sim! Mas também de percepção sobre as limitações e dificuldades enfrentadas devido a não institucionalidade de direitos. Uma frase que sintetiza esse aspecto e que é muito repetida, de autoria não precisa, diz: “aos amigos tudo, aos inimigos, a lei”. Façamos lei às nossas demandas, que se cumpram os direitos sociais essenciais a uma vida digna, que a existência do outro seja garantida, mesmo que seja apenas um “brasileiro, sem parentes importantes”. 

E nós, que “somos como vocês”, de dentro dessa estrutura que nos alija, depois de ter alcançado um mínimo espaço, devemos nos questionar, e seguir, como anunciou Belchior: “enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto”. 

 

Marcelo Gomes da Silva é professor da UESC e membro do Portal do Bicentenário 

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

 

Edição: Elis Almeida