Minas Gerais

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Água é vida e não mercadoria: por uma Copasa pública e de qualidade

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No Brasil, são quase 35 milhões de pessoas sem acesso à água potável e cerca de 100 milhões desprovidas de serviços de disposição adequada de esgoto sanitário - Foto: AFP
Além de fornecer água e esgoto tratado, a Copasa investe em infraestrutura e movimenta a economia

Em 22 de março celebramos o Dia Mundial da Água, bem comum tão importante, porém tão maltratado e mal distribuído no Brasil e no mundo. A afirmação "água é vida" é bastante literal: 70% do corpo humano é composto por água e, da mesma forma, cerca de 70% do Planeta Terra é coberto de água.

Embora seja indispensável para a vida e para a saúde humana e do Planeta, cerca de 780 milhões de pessoas vivem sem acesso à água potável para beber e muitas outras vivem sem destinação e tratamento adequados de esgotos. Estimativas apontam que até 2025 mais de 2 bilhões de pessoas em todo mundo viverão em regiões com absoluta escassez hídrica.

No Brasil, são quase 35 milhões de pessoas sem acesso à água potável e cerca de 100 milhões desprovidas de serviços de disposição adequada de esgoto sanitário. A falta d'água não deveria ser um problema em nosso país, uma vez que abrigamos cerca de um quinto das reservas hídricas do Planeta. Por que então as notícias sobre escassez hídrica têm se tornado comuns por aqui nos últimos anos?

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A resposta a essa pergunta tem a ver com a gestão das águas. Passa, portanto, pela regulação pública do uso privado, pelo controle dos desperdícios e pela desigualdade no uso e na distribuição da água. Há agravantes que somam nesse cenário: as extinções de aquíferos pela mineração e a ocorrência de desertificação em função de manejo agrícola e pecuário inadequados. Da mesma forma, há que se considerar os efeitos do aquecimento global provocados pelo modelo de superexploração da natureza que sustenta o capitalismo desde a Revolução Industrial.

Gestão das águas no campo e na cidade

Nas cidades, a gestão hídrica envolve a água tratada distribuída, o esgoto coletado e tratado, as águas urbanas (pluviais e fluviais) e os efeitos dos resíduos sólidos sobre as águas (poluentes). Seja na cidade ou no campo, os chamados recursos hídricos são indispensáveis para toda e qualquer atividade econômica. Algumas atividades em particular utilizam grandes volumes de água, casos da monocultura agrícola, da pecuária e da mineração, três importantes segmentos da economia mineira.

Cerca de 70% da água consumida no mundo é destinada à irrigação. O restante vai para o uso industrial (22%) e para o consumo doméstico (8%). No Brasil, dados da Agência Nacional de Águas (ANA), apontam que a irrigação consome 72% da água disponível (são mais de 29 milhões de hectares de terra irrigados), seguida de 11% da pecuária, 9% de uso urbano, 7% industrial e 1% rural.

Como vimos, o Brasil possui água em abundância e, mesmo diante dos altos volumes hídricos consumidos nessas atividades produtivas, o principal problema segue sendo o manejo inadequado e a falta de sistemas que promovam o retorno da água utilizada para as bacias após o uso e o tratamento.

De todo o volume hídrico gasto na irrigação, mais da metade se esvai com a evaporação e com os desperdícios. Dados da FAO/ONU mostram que uma redução de 10% do total desperdiçado poderia abastecer o dobro da população mundial. Outro problema é a contaminação dos solos e cursos d'água com compostos químicos e metais pesados empregados na indústria e na mineração. Outro problema grave são os agrotóxicos que sustentam as monoculturas.

Vale lembrar que o Brasil é o campeão mundial no consumo de agrotóxicos e esse montante vem crescendo ano a ano. Pesquisa realizada pela Agência Pública, em diversos municípios do país, mostrou que um único copo de água pode conter até 27 tipos diferentes de agrotóxicos – um verdadeiro coquetel tóxico, cada vez mais desprovido de regulação pública. Somente em Minas Gerais foram identificados 50 municípios nessa condição.

Com todas essas questões, um questionamento chave se coloca: como garantir oferta universal dos serviços de água e saneamento para a população da cidade e do campo? E ainda, como garantir a qualidade desses serviços a baixo custo?

Por um serviço público e de qualidade

Embora seja um direito humano universal, o acesso à água no Brasil é altamente desigual. As contas de água pesam no orçamento de parcela expressiva das famílias. E, do outro lado da equação, as empresas públicas de água e saneamento aparentemente têm dificuldades de se manter. Como isso é possível? O que pode ser feito?

Entendo que o caminho passa, necessariamente, pelo fortalecimento do sistema público, a partir de uma perspectiva integral e integrada das atividades que requerem o uso das águas. Em Minas, falamos, portanto, do fortalecimento da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) – empresa do tipo economia mista e capital aberto.

Uma das mudanças institucionais que impactou fortemente a empresa ocorreu em 2006. À época, o governo de Aécio e Anastasia validou uma necessidade de lucro que pudesse ser destinado fora do setor abrangido pela Copasa. Até então, o lucro obtido com suas operações remunerava apenas o capital não próprio destinado a investimentos de infraestrutura e expansão, bem como para a reposição de ativos depreciados.

Com a mudança de 2006, o lucro da Copasa passou a ser utilizado para cobrir rombos fiscais do controlador da empresa (sendo o Estado de MG o principal deles), em uma periodicidade trimestral, e de demais investidores privados. Em razão disso, a cada ano os investimentos no saneamento em Minas se mostram aquém do necessário, intensificando a condição de precariedade e de sucateamento.

Ao invés de promover Planos de Demissão Voluntária como fez o governador Zema, precisamos aumentar e qualificar ainda mais seu quadro de servidores. Outro aspecto sensível é o fornecimento dos serviços no interior. Atualmente, a Copasa trabalha com o chamado subsídio cruzado: um regime que prevê a distribuição da receita excedente oriunda de cidades ou regiões 'lucrativas' para regiões menores e mais pobres. Embora não seja consensual, há que se considerar que é por meio desse instrumento que muitos municípios, grupos sociais e territórios do estado de Minas conseguem ter acesso à água tratada disponível em cada localidade e residência.

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Na prática, a Região Metropolitana e outras grandes cidades viabilizam o serviço no interior. Ao fim e ao cabo, vale destacar que mecanismos como os subsídios cruzados existem apenas em grandes companhias, com alcance estadual e/ou regional, em que há ganhos de escala. Foi justamente esse subsídio que permitiu a sustentabilidade financeira do saneamento por 50 anos em nosso estado.

Caso a Copasa seja privatizada, como quer o atual governo de Minas, o risco de desorganização do setor, de piora das disparidades de atendimento, de aumento das tarifas e mesmo de desabastecimento hídrico para essas localidades é bastante concreto. Além de fornecer água e esgoto tratado, a Copasa e demais estatais mineiras exercem outro papel fundamental em nosso estado: investem em infraestrutura, geram empregos e movimentam a economia.

Tais investimentos podem ser qualificados e devem estar alinhados a um projeto de desenvolvimento voltado para a superação da crise socioambiental da atualidade. Na linha do subsídio cruzado já existente entre regiões, é possível instituir estímulos para determinadas atividades econômicas em detrimento de outras, visando o incentivo da agricultura familiar e da agroecologia ao invés da monocultura agrícola, por exemplo.

Para essa e outras medidas se viabilizarem, a empresa precisa estar fortalecida. Qual é, portanto, o sentido de priorizar a remuneração dos acionistas privados quando da distribuição dos lucros da estatal? Por que não investir mais em infraestrutura, em novas tecnologias e na remuneração do corpo de servidores? E em que medida o compromisso com a oferta universal dos serviços de água e saneamento é compatível com uma empresa privada?

Encerro o texto com perguntas que merecem nossa atenção. O futuro da Copasa e da gestão hídrica de Minas Gerais é matéria de interesse de todos nós.

Luiza Dulci é economista e doutora em sociologia. Integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo e constrói o Movimento Bem Viver MG.

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Larissa Costa