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Os 3C’s os 3 F’s da Economia Global e as oportunidades para o Brasil

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"Temos, assim, os 3 C’s: Conflito (entre Ucrânia e Rússia), COVID-19 e Clima. Estes são os marcos das novas décadas." - Foto: Sergei Supinsky / AFP
Este mundo mais fragmentado tende a ser também menos previsível

O mundo passou por dois choques sistêmicos no espaço de dois anos. A pandemia de covid-19 desde início de 2020 e a ocupação da Ucrânia pela Rússia desde o final de fevereiro último. As ramificações destes conflitos têm múltiplas dimensões; afetam o funcionamento da economia, comércio e preços de bens básicos, bem como a qualidade e a expectativa de vida de populações inteiras.

Além disso, o vaivém da geopolítica em sua corrida tecnológica tem o potencial de alterar as regras do jogo na interação entre as nações. Estes dois processos são constrangidos por algo ainda mais amplo: a crise climática.

Temos, assim, os 3 C’s: Conflito (entre Ucrânia e Rússia), COVID-19 e Clima. Estes são os marcos das novas décadas.

A Paridade de preços de importação (PPI) da Petrobras desconsidera os efeitos sociais da calibragem dos preços

Seus impactos podem ser resumidos em três grandes dimensões econômicas, os 3 F’s (em inglês): Fuel (combustíveis), Food (alimentos) e Finance (finanças).

A pandemia de covid-19 afetou profundamente o funcionamento das cadeias produtivas globais e lançou efeitos distributivos perversos sobre os países menos desenvolvidos. A carestia global de combustíveis e alimentos se deve a gargalos do transporte marítimo que representam 80% do comércio mundial de bens, das limitações de infraestrutura que acometem quase todos os países (desenvolvidos inclusive) e da incrível quantidade de dinheiro que os Bancos Centrais dos países desenvolvidos injetaram no sistema financeiro internacional, bem como os generosos pacotes de transferências sociais em vários governos mundo afora.

As crises oferecem uma oportunidade. Precisamos trabalhar para poder aproveitá-la

Estes dois últimos fatores turbinaram a sanha especulativa em mercados de derivativos baseados nos preços de commodities, elevando o risco financeiro de instituições de investimento posicionadas nestes instrumentos. Esta tempestade perfeita conjuga rigidez das condições de oferta com expansão abrupta da demanda em um cenário de elevado endividamento corporativo e familiar. Foi nesta paisagem pouco alvissareira que se adicionou o conflito entre Rússia e Ucrânia.

Rearranjo do sistema geopolítico global

Ambos os países estão entre os maiores exportadores de commodities do mundo. Os preços do trigo, do milho e do petróleo – dentre outros – dispararam nas bolsas mundo afora. Para agravar a situação, a Rússia é exportadora relevante de fertilizantes. Em face das sanções impetradas contra o país pelos países da OTAN, liderados pelos EUA, o risco de crise de abastecimento destes bens torna desastrosos os efeitos potenciais sobre a capacidade produtiva de bens alimentícios não apenas na Rússia, mas em todos os países que dependem de suas volumosas exportações de bens finais e intermediários.

Com efeito, os preços dos bens mais afetados por estas crises seriais respondem com intensidade variável. Ademais, a crise afeta os grupos de renda de forma diferencial.   Não apenas os países mais pobres sofrem mais com as assimetrias de poder econômico e tecnológico da economia global, como são as pessoas mais pobres – em todos os países – as que acabam sofrendo mais com a elevação persistente do preço de commodities alimentares e energéticas.

Gama de experiências bem-sucedidas de iniciativas estatais, como SUS, Embraer, Petrobras e Embrapa

Neste sentido, em uma economia internacional altamente integrada, as sanções econômicas assumem um claro efeito bumerangue, isto é, afetam a economia dos países penalizados, mas geram também efeitos sobre as populações de países envolvidos e não envolvidos diretamente no conflito.

Os desdobramentos destas crises seriais, constrangidos pela necessidade de lidar com a crise climática, impõem um rearranjo do sistema geopolítico global, com a emergência de novos polos econômicos, tecnológicos e militares. O mundo policiado pelos EUA e dominado pela sua moeda de reserva internacional (o dólar) está cedendo espaço para um fracionamento do poder em várias dimensões (política, militar, cultural, tecnológica, comercial etc.)

Mudanças importantes nos terrenos da tecnologia da informação, do armamento nuclear e das fontes de energia vem alterando o cenário global, com a dissolução da liderança hegemônica dos EUA. Este mundo mais fragmentado tende a ser também menos previsível e mais sujeito a crises localizadas e frequentes. Estamos diante de uma transformação profunda no modelo de globalização vigente nos últimos 40 anos.

O que isso significa para o Brasil?

Começando pela inflação global, o caso brasileiro reflete o padrão notado em outros países, desde o início da pandemia, em 2020. O relatório do IPEA sobre “inflação por faixa de renda” vem evidenciando o processo fortemente regressivo do ponto de vista da distribuição.

Em um cenário de elevado estresse social, com crises sanitária, socioeconômica e hídrica, a população brasileira já sofria com a alternância de preços elevados em energia elétrica, combustíveis e alimentos. Segundo dados da Pesquisa de Orçamento Familiar, apenas os gastos das famílias com moradia, transporte e alimentação dominam 72% do orçamento das famílias de menor renda. Se incluirmos despesas com saúde e educação, 85% do orçamento ficam comprometidos.

Cumpre notar que nos três setores em questão, a opção por menor atuação do Estado, desde 2016, levou à anulação dos estoques reguladores de alimentos, à falta de planejamento e de investimentos no setor elétrico e à má gestão dos recursos hídricos (causa pouco enfatizada da chamada crise hídrica) e o automatismo da política de paridade de preços de importação (PPI) da Petrobras, em absoluta inobservância aos efeitos sociais da calibragem dos preços dos derivados de petróleo no mercado doméstico.

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Na ausência de uma mudança profunda do atual modelo de desenvolvimento, o cenário econômico brasileiro levanta poucas esperanças. A depressão econômica iniciada em 2015 tem as seguintes características: queda da renda per capita na década dos 2010, atividade estagnada, inflação elevada, precarização das condições de trabalho, elevado desemprego e sub-ocupação da força de trabalho, queda acentuada do rendimento médio real de trabalhadores, taxas de juros com dois dígitos, investimentos públicos em mínimas históricas e franca deterioração (planejada) das capacidades de coordenação, regulação, fiscalização e inovação do Estado.

Esta corrida em direção ao fundo do poço agrava as desigualdades abissais que já caracterizam o nosso país e tende a elevar as tensões que dilaceram nosso tecido social.

A saída deste terreno movediço não é trivial.

Por este motivo, organizei, junto com Nelson Barbosa (UnB e FGV-SP), o livro Bidenomics nos Trópicos (Editora FGV). Convidamos 20 especialistas em diversas áreas do plano Biden para refletir sobre como implementar no Brasil as políticas de retomada do poder de planejamento do Estado, de transformação produtiva e tecnológica e de redução das desigualdades sociais. Guardadas as proporções e as possibilidades ao nosso dispor, esta disputa de visões nos EUA é bastante inspiradora para o Brasil.

Experiência bem-sucedidas

Afinal, nosso país compreende uma gama de experiências bem-sucedidas de iniciativas estatais, como o SUS, a Embraer, a Petrobras, a Embrapa, para ficar em exemplos mais conhecidos.

Além disso, a pandemia e a guerra Rússia-Ucrânia fizeram ressurgir o debate quanto à autossuficiência doméstica na produção da IFAs para vacinas, de fertilizantes, de semicondutores (caso da tentativa do governo Bolsonaro de liquidar o CEITEC, em Porto Alegre) e no refino do petróleo.

Os 3 C’s das crises conjugadas podem encontrar o Brasil com os 3 F’s mais alinhados ao desenvolvimento de longo prazo. Todavia, há soluções de curto prazo para que a produção e distribuição de alimentos e de combustíveis possam equilibrar de forma racional os objetivos corporativos e sociais envolvidos nestes setores, como nos casos dos estoques reguladores de alimentos e dos fundos de estabilização dos preços do petróleo.

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Estas políticas podem abrir caminhos para políticas estratégicas nestes setores sensíveis ao desarmar posições ideológicas rígidas refratárias à ideia de planejamento estatal em setores estratégicos, como prevê a Constituição Federal de 1988. No setor de petróleo, pode-se abrir uma oportunidade de reconstruir a capacidade de refino da Petrobras para tornar o PPI mais alinhado aos objetivos de suprimento energético da nação.

Estratégia de longo prazo

Esta discussão pode recolocar a necessidade de construirmos uma estratégia de longo prazo para o sistema energético brasileiro, em que a inovação constante seja o objetivo dos ecossistemas produtivos envolvendo os setores público e privado.

O efeito de uma mudança na qualidade e no horizonte das preocupações da opinião pública pode facilitar o avanço nas frentes ambiental, tecnológica e das infraestruturas (humana e física). E aqui entra o terceiro F, de finanças. A flexibilidade das finanças públicas de um país emissor de sua própria moeda pode servir de guia a um modelo em que o dinheiro sirva para turbinar nossa capacidade inovativa e em que o sistema tributário desonere a produção e imponha um teto à acumulação desenfreada de riqueza.

Um sistema financeiro paciente e voltado à inovação requer um Estado forte e inteligente, com bancos de desenvolvimento e orçamento de pesquisa e inovação, dando suporte à tomada de risco por parte de agentes privados e de instituições públicas de pesquisa.

Apenas desta forma o Brasil poderá contribuir positivamente com a busca de soluções para o terceiro C, a crise climática. Precisamos mudar o modelo agroexportador financeirizado para uma clara defesa da nossa soberania tecnológica, energética e econômica. As crises mencionadas oferecem uma oportunidade. Precisamos trabalhar com afinco para poder aproveitá-la.

André Roncaglia é economista e professor na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Escreveu com Paulo Gala o livro “Brasil, uma economia que não aprende” e organizou com Nelson Barbosa o livro “Bidenomics nos Trópicos” (Editora FGV).

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida