Minas Gerais

SERRA DO CURRAL

Artigo | O belo horizonte sob ameaça

É preciso derrubar o governo Zema e superar o modelo de mineração que torna o Brasil cada vez mais pobre

Belo Horizonte (MG) | Brasil de Fato MG |
A mineração encontra mais força e espaços quando se depara com governos capachos que representam seu projeto - Foto: Instituto Guaicuy

Em 1976, indignado com o avanço da mineração na Serra do Curral e com os rumos do projeto econômico de urbanização na capital mineira, o poeta Drummond publicou o poema “Triste Horizonte”.

Nos seus versos, que são um misto de desabafo e de manifesto, ele anuncia o rompimento com Belo Horizonte e afirma que nunca mais pisaria na cidade.

A indignação com a mineração de Drummond, tão marcante em sua vasta obra, é sentida, ainda, por milhões de mineiros que enfrentam, a cada dia, suas serras sendo engolidas e destruídas pela ganância do capital mineral.

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A mineração encontra mais força e espaços quando se depara com governos capachos que representam seu projeto. É o que estamos vivenciando neste momento no Brasil e em Minas, com os governos de Bolsonaro e de Zema, que submetem o estado a um programa neoliberal, que privatiza e entrega nossos bens naturais, atentando contra a soberania nacional.

Neste momento, o governo Zema avança, a todo custo, na aprovação de um grande projeto de minério de ferro na Serra do Curral. A mina, se instalada, irá desconfigurar completamente um dos principais símbolos da capital mineira.

O capital não tem limites

Como justificar um projeto que vai destruir o principal marco de formação da capital de Minas Gerais? Que vai inviabilizar uma das poucas áreas verdes de lazer da cidade? Que vai trazer inúmeros transtornos para as comunidades locais? Que vai emitir pó de minério por toda cidade causando complicações na saúde? Que vai contaminar e exterminar as águas da região?

A lógica de acumulação de lucro é capaz de passar por cima de qualquer coisa, aniquilar o que for preciso para alcançar seus objetivos. Mas dessa vez, e também das próximas, não passarão.

 

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Embebidos dos poemas e da indignação de Drummond não podemos permitir que o horizonte fique triste. É preciso torná-lo feliz e com esperança de dias melhores e, para isso, é preciso derrotar o projeto de mineração na Serra do Curral, derrubar o governo Zema e superar o modelo de mineração que torna o Brasil cada vez mais pobre, que saqueia nossos minérios e que destrói territórios.  

Abaixo, o poema de Drummond, publicado em 1976:

Triste Horizonte

Por que não vais a Belo Horizonte? a saudade cicia e continua, branda: Volta lá.

Tudo é belo e cantante na coleção de perfumes das avenidas que levam ao amor, nos espelhos de luz e penumbra onde se projetam os puros jogos de viver. Anda! Volta lá, volta já.

E eu respondo, carrancudo: Não.

Não voltarei para ver o que não merece ser visto, o que merece ser esquecido, se revogado não pode ser.

Não o passado cor-de-cores fantásticas, Belo Horizonte sorrindo púber e núbil sensual sem malícia, lugar de ler os clássicos e amar as artes novas, lugar muito especial pela graça do clima e pelo gosto, que não tem preço, de falar mal do Governo no lendário Bar do Ponto.

Cidade aberta aos estudantes do mundo inteiro, inclusive Alagoas, "maravilha de milhares de brilhos vidrilhos"mariodeandrademente celebrada.

Não, Mário, Belo Horizonte não era uma tolice como as outras. Era uma provinciana saudável, de carnes leves pesseguíneas. Era um remanso, era um remansopara fugir às partes agitadas do Brasil, sorrindo do Rio de Janeiro e de São Paulo: tão prafrentex, as duas! e nós lá: macio-amesendados na calma e na verde brisa irônica...

Esquecer, quero esquecer é a brutal Belo Horizonte que se empavona sobre o corpo crucificado da primeira. Quero não saber da traição de seus santos. Eles a protegiam, agora protegem-se a si mesmos. São José, no centro mesmo da cidade, explora estacionamento de automóveis. São José dendroclasta não deixa de pé sequer um pé-de-pau onde amarrar o burrinho numa parada no caminho do Egito. São José vai entrar feio no comércio de imóveis, vendendo seus jardins reservados a Deus. São Pedro instala supermercado. Nossa Senhora das Dores, amizade da gente na Floresta, (vi crescer sua igreja à sombra do Padre Artur) abre caderneta de poupança, lojas de acessórios para carros, papelaria, aviário, pães-de-queijo

Terão endoidecido esses meus santos e a dolorida mãe de Deus? Ou foi em nome deles que pastores deixam de pastorear para faturar? Não escutem a voz de Jeremias (e é o Senhor que fala por sua boca de vergasta): "Eu vos introduzi numa terra fértil, e depois de lá entrardes a profanastes. Ai dos pastores que perdem e despedaçam o rebanho da minha pastagem! Eis que os visitarei para castigar a esperteza de seus desígnios".

Fujo da ignóbil visão de tendas obstruindo as alamedas do Senhor. Tento fugir da própria cidade, reconfortar-me em seu austero píncaro serrano. De lá verei uma longínqua, purificada Belo Horizonte sem escutar o rumor dos negócios abafando a litania dos fieis. Lá o imenso azul desenha ainda as mensagens de esperança nos homens pacificados - os doces mineiros que teimam em existir no caos e no tráfico. Em vão tento a escalada. Cassetetes e revólveres me barram a subida que era alegria dominical de minha gente. Proibido escalar. Proibido sentir o ar de liberdade destes cimos, proibido viver a selvagem intimidade destas pedras que se vão desfazendo em forma de dinheiro. Esta serra tem dono. Não mais a natureza a governa. Desfaz-se, com o minério, uma antiga aliança, um rito da cidade. Desiste ou leva bala. Encurralados todos, a Serra do Curral, os moradores cá embaixo. Jeremias me avisa: "Foi assolada toda a serra; de improviso derrubaram minhas tendas, abateram meus pavilhões. Vi os montes, e eis que tremiam. E todos os outeiros estremeciam. Olhei terra, e eis que estava vazia, sem nada nada nada".

Sossega minha saudade. Não me cicies outra vez o impróprio convite. Não quero mais, não quero ver-te, meu Triste Horizonte e destroçado amor.

 

Luiz Paulo Siqueira é integrante da coordenação nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM)

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Larissa Costa