Minas Gerais

Coluna

Crônica | O porteiro

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Ele alega que estava dormindo. Pede para verificarem o sistema de vigilância do prédio. Nada adianta. O sistema foi sabotado - Foto: José Cruz EBC
As manchetes dos jornais comerciais estampam sua foto e o chamam de assassino cruel, perverso e frio

 

Na portaria daquele edifício grã-fino, o porteiro dorme como se não houvesse amanhã. Uma madrugada sinistra, gelada e silenciosa. Nada o atrapalha. Sua hibernada é como um troféu de um time campeão da várzea num torneio de mata-mata que sobrevive numa selva de concreto e aço. 

Do outro lado da rua, uma moto rompe o silêncio com seu barulho infernal. Na portaria, chega um homem com um olhar mais assustado e capcioso que o da Capitu. Ele parece implorar para entrar no edifício. O frio era intenso. Mais alguns minutos e sua vida será ceifada.

Enquanto o porteiro dorme na madrugada fria, silenciosa e hostil, a vida e a morte andam lado a lado. O homem desiste de entrar naquele edifício. Fica estático. Parado. Imóvel. Esperando um milagre qualquer. Só que, naquela altura do campeonato, não encontrará nada para salvá-lo. Ele cai no chão. A temperatura cai mais ainda. A sua única companhia é o silêncio ensurdecedor.

O interfone chama sem parar e sem sucesso. Nada acorda aquele porteiro. Uma mulher sofre com a violência doméstica do seu marido. Um homem importante e de posses. 

De repente, o porteiro acorda algemado e cercado por policiais. Acusado de dois assassinatos naquela madrugada fria, gelada e hostil. Ele alega que estava dormindo. Pede para verificarem o sistema de vigilância do prédio. Nada adianta. O sistema foi sabotado. A mulher que pedia socorro e o homem que estava na rua foram encontrados mortos na portaria do prédio. O porteiro acorda de um sono superpesado para um pesadelo da vida real. 

Ele olha para a rua e vê um amontoado de gente o condenando e vários jornalistas o chamando de assassino cruel. Em segundos, sua vida mudou para pior. 

Na gaveta da mesa em que ele dormia com cabeça apoiada, a polícia encontra um revolver só com uma bala na agulha. As outras balas foram usadas naquela madrugada silenciosa, fria e hostil. Ninguém acredita na história dele. Condenado a hibernar na vida real agora. 

As manchetes dos jornais comerciais estampam sua foto e o chamam de assassino cruel, perverso e frio. Ele parece não querer acordar. Ele quer continuar a dormir. Agora vai dormir numa solitária fria, silenciosa e hostil. Ele observa que os “porteiros” da cadeia não são nada amigáveis. 

“Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de uma HK”.

 

Rubinho Giaquinto é covereador da Coletiva em Belo Horizonte.

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Larissa Costa