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Kalil “colou” em Lula, por que Romeu Zema não “descola” de Bolsonaro?

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Estratégia ambígua do governador pode ser também sua fragilidade - Foto: Isac Nóbrega
Zema não tem um plano de governo, sua única obsessão é privatizar o Estado

Minas Gerais é um estado decisivo nas eleições presidenciais, por duas razões. Primeira, porque nosso Estado é o segundo maior colégio eleitoral do Brasil, com 15,663 milhões de eleitores; segundo, e mais importante, é que Minas Gerais é uma amostragem muito precisa do Brasil: temos regiões muito desenvolvidas, parecidas com o Sudeste, com indústria, agroindústria e serviços, e temos outras regiões parecidas com o Nordeste, pouco desenvolvidas e com muita pobreza. Então, quando falamos que “quem ganha a eleição em Minas ganha no Brasil”, não é nenhum bairrismo, é porque nosso Estado é um pouco o “retrato do Brasil”.

Kalil colou em Lula, Zema não se descolou de Bolsonaro

Desde o ano passado, tenho me dedicado a discutir as eleições em Minas Gerais. Num dos artigos, escrevi: “Matéria publicada no Valor Econômico, do dia 10/08/2021, traz como chamada: ‘Em Minas, sucessão estadual está descasada da nacional’. Este ‘descasamento’, em minha opinião, é amplamente favorável a Romeu Zema, que, numa eleição ‘desnacionalizada’, tem tudo para se reeleger governador. Já Kalil, para se tornar uma candidatura competitiva e vencer a eleição, terá que se vincular à disputa nacional à candidatura de Lula ou, pelo menos, no primeiro turno, ‘abrir’ o palanque para candidatos da Frente Democrática e, no segundo turno, apoiar o adversário de Bolsonaro”.

Depois de ensaiar uma pré-campanha como ‘outsider’ e com críticas ao PT e a Lula, Kalil fez o que precisava ser feito: “colou” em Lula, em um estado onde o petista vem liderando com folga a disputa.

Sobre a candidatura de Romeu Zema, afirmei em meu artigo: “Romeu Zema foi eleito na ‘onda antiPT’ e, em aliança com o bolsonarismo, corre um sério risco agora, ao se manter vinculado ao presidente, ao que tudo indica, de forma envergonhada, de ser atropelado pela ‘onda antibolsonarista’ que está se formando no Nordeste e também no Sudeste; esta onda deverá aumentar em Minas Gerais, onde o PT e aliados venceram quatro eleições presidenciais (2002, 2006, 2010, 2014)”.
 

Por que Zema não se descola de Bolsonaro?

Este é um enigma desta eleição; Romeu Zema vem adotando uma estratégia política “suicida”. Ora, se Lula está cada vez mais forte no Brasil e em Minas; se Bolsonaro mantém uma rejeição altíssima e não consegue ultrapassar um terço do eleitorado, seria natural em termos políticos que Romeu Zema, que tem bons índices de aprovação popular de seu governo, tomasse distância do presidente. Mas não é isso que vem acontecendo: o governador continua “namorando” Bolsonaro, é figura presente ao lado do presidente em todas as visitas a Minas Gerais. Bolsonaro “avançou o sinal” e praticamente abandonou a candidatura do senador Carlos Viana, do PL, para estabelecer uma parceria com Romeu Zema e disse recentemente que “em time que está ganhando não se mexe”. Romeu Zema devolveu a gentileza de Bolsonaro dizendo que não gostaria de trabalhar com Lula, devido ao “anacronismo” do petista; “anacronismo” para um ultraliberal, é a defesa do Estado Social (saúde, educação, previdência, leis trabalhistas e assistência social), da soberania nacional e das estatais fundamentais ao nosso desenvolvimento. 
 

Zema defendeu que o vírus deveria viajar o estado

O governador Romeu Zema não é anticiência como Bolsonaro: defende a vacinação, o uso das máscaras e o álcool em gel. Mas, como um ultraliberal, Romeu Zema defende, como escreveu em seu programa de governo, que “a garantia da liberdade é a única e verdadeira função do estado”, ou seja, ele defende a “privatização de tudo”. Romeu Zema chegou a adotar, nesse sentido, uma posição semelhante com Bolsonaro no enfrentamento da covid-19 em Minas Gerais, na questão do isolamento social e do fechamento da economia.

Romeu Zema, na primeira onda da covid-19, “privatizou” o vírus. Veja a íntegra do raciocínio do governador quando ele afirmou que o vírus tinha que viajar: “São medidas que o prefeito resolveu adotar, e nós temos observado que em muitas regiões, em muitas cidades, os casos existentes ou até a ausência de casos não justifica o fechamento total do comércio, até porque, nessa crise, nós precisamos que o vírus viaje um pouco. Se nós impedirmos ele totalmente, ele acaba deixando algumas regiões sem estar infectadas, e amanhã nós vamos ter uma onda gigantesca nessa região. Então, o ideal é que ele se propague, mas devagar, e a ausência total de propagação é ruim”. (UOL, 01/04/2020).

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 Ao invés de o poder público atuar para ampliar o isolamento social com restrições ao funcionamento das atividades econômicas, para prevenir a doença, para Romeu Zema, o Estado deveria garantir a “propagação controlada do vírus”; é a chamada “imunidade de rebanho”, onde o vírus deveria infectar a maioria da população e quem sobrevivesse “estaria imunizado”. Inacreditável e desumano!

Com o avanço avassalador da segunda onda da pandemia em Minas Gerais, e para não ser atropelado em sua popularidade, o governador, a contragosto, teve que contrariar a sua ideologia ultraliberal e criar a “Onda Roxa” de aplicação compulsória em toda Minas Gerais, com fechamento de todas as atividades não essenciais no Estado. E o governo do Estado e os “novistas”, visivelmente, demonstraram um enorme desconforto com o fechamento de Minas e mostraram ansiedade em se livrar da “Onda Roxa”, até porque a sustentação de fechamentos por prazos mais longos implicaria em reabrir o “orçamento de guerra” no Brasil, para aumentar o auxílio emergencial e o apoio às empresas, política que o Partido Novo é radicalmente contrário.


Partido Novo é o velho liberalismo de 150 anos atrás, o mesmo de Bolsonaro e Guedes

Romeu Zema não se “descola” de Bolsonaro porque tem uma identidade plena e até mais ampla com o ultraliberalismo que Bolsonaro e Paulo Guedes. Romeu Zema não tem um plano político de governo; sua única obsessão é privatizar o Estado; é um adepto da “utopia liberal”, na expressão do sociólogo José Luís Fiori. Como o ultraliberalismo é uma enorme violência contra os direitos do povo e, dadas as dificuldades de compatibilizar liberalismo e democracia, Romeu Zema considera como normal o autoritarismo de Bolsonaro; ou seja, o “privatiza tudo” somente se torna possível com regimes autoritários e/ou ditatoriais, como no caso do Chile, regime que inspira Paulo Guedes. Daí porque Romeu Zema prefere correr riscos, prefere a adoção de uma estratégia eleitoral “suicida” a perder o apoio do eleitorado de direita, privatista e autoritário, dos adeptos, como ele, da “utopia liberal”.

 O Partido Novo é o velho liberalismo de 150 anos atrás. Para entender a aliança de Romeu Zema com Bolsonaro, é preciso compreender seu projeto de Estado e de sociedade. No seu programa de governo, ele defende o Estado mínimo e a privatização de tudo, inclusive da saúde e da educação: “acreditamos que a garantia da liberdade é a única e verdadeira função do estado, e que, por isso, ele deve ser mínimo, pois o indivíduo deve ser dono de si”. Eu fiz um estudo sobre as privatizações de Romeu Zema; utilizei o alfabeto para enumerá-las; deu alfabeto completo: de A a Z.


Trato, a seguir, das três propostas mais graves do programa de Romeu Zema: estatais, saúde e educação.

Privatização das estatais: “Governantes, ao longo da história política, criaram um discurso de que as empresas estatais são um patrimônio público da população e que a desestatização implicaria no fim de direitos da sociedade e na entrega dessas empresas para estrangeiros. Quando se fala em privatizar empresas estatais de Minas Gerais, fala-se em inibir a corrupção e a troca de favores políticos, melhorar a governança e eficiência dessas empresas e, principalmente, garantir a priorização da atuação do estado para aquilo que realmente impacta a população”. Romeu Zema, em seu programa de governo, quer a privatização da Cemig, Copasa, Codemig, Epamig, Emater.

Privatização do SUS: “A assistência à saúde assegurada pelo livre mercado custa menos e é mais versátil que aquela proporcionada diretamente pelo Estado; as mudanças na saúde do estado de Minas Gerais dependem de medidas em todas as esferas de governo. No novo sistema de saúde que se propõe, será facultado aos brasileiros escolher permanecer nesse novo sistema ou migrar para a rede de saúde privada”.

Privatização da educação, da pré-escola até a Universidade: “A mudança na educação depende de uma série de mudanças federais. Defenderemos medidas como criação do ProEduca, que consiste na extensão do ProUni para alunos desde a pré-escola até o final do ensino médio, ou seja, ao invés de o governo investir em escolas, o dinheiro da educação iria diretamente para aquelas famílias que desejarem colocar seus filhos em uma escola particular”.

É esta utopia liberal de Romeu Zema que o motivou a ingressar na vida pública e, para os dirigentes novistas, a política só tem sentido se estiver a serviço da privatização. Daí porque o mais importante é não perder o apoio do eleitorado, ainda que minoritário, do “privatiza tudo”. É esse posicionamento que os leva até mesmo ao suicídio político em Minas Gerais; posição idêntica à adotada pelos parlamentares do partido Novo no Congresso Nacional, muitas vezes sozinhos, nos temas da agenda ultraliberal.


Estratégia de Zema tem muitas fragilidades

Romeu Zema e o Partido Novo podem estar superestimando, por diversas razões, a força que têm na disputa para o governo do Estado. A aprovação popular de que desfruta o governador é baseada em aspectos muito frágeis, que poderão se desfazer ao longo da campanha, até porque seu principal adversário, Alexandre Kalil, também é governo, e, como prefeito de Belo Horizonte, tem realizações muito mais relevantes.
Tudo indica que a candidatura de Romeu Zema terá como eixos mostrar os “avanços” no Estado de Minas Gerais: o pagamento em dia dos servidores; os repasses feitos para os municípios referentes a impostos retidos no governo Fernando Pimentel, inclusive os da saúde; a renegociação do pagamento de R$ 7 bilhões de precatórios em 72 parcelas; a campanha de vacinação; os investimentos prometidos no Estado, em particular com o acordo da Vale de R$ 27 bilhões e os repasses aos municípios de parte do dinheiro da Vale. Será isto o suficiente para reeleger Romeu Zema?

O governador vai disputar a eleição com Alexandre Kalil, que é um gestor com ampla aprovação popular em Belo Horizonte, e vai confrontar com as realizações o governador no Estado. Veja o que disse Kalil sobre o pagamento dos servidores, por exemplo: “Enquanto nós, mineiros, pensarmos que pôr salário em dia e pagar décimo-terceiro são propostas de governo, o estado não se tornará o que ele merece ser. No meu governo, à frente da Prefeitura, eu não paguei um dia de salário atrasado e antecipei todos os décimos terceiros, com exceção do ano da pandemia”.

Além do mais o pagamento em dia dos servidores não vai ampliar a votação de Romeu Zema entre os servidores, que, tudo indica, votarão em massa em Kalil.
Na questão crucial do combate à Covid-19, a situação do governo Romeu Zema também é frágil. Depois de se gabar de ter evitado a ampliação da pandemia na primeira onda e sugerir a “viagem” do vírus pelo Estado, a segunda onda atingiu em cheio nosso estado. Foi uma devastação: 61.544 mortes (dia 27/05/22), ocupando Minas Gerais a terceira colocação nacional e o Estado subiu 11 posições na taxa de mortalidade por 1 milhão de habitantes da 26ª para 15ª posição no ranking nacional dos Estados; um resultado deste não tem como colocar Zema com uma boa gestão da pandemia.

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Uma demarcação forte com o governo Fernando Pimentel é também frágil, pois, se é verdade que o governador colocou em dia os salários dos servidores e retomou os repasses às prefeituras, isto se deu, em grande medida, ao não pagamento da dívida com o governo federal; dívida que explodiu nos últimos três anos, de R$ R$ 113 bilhões para R$ 154 bilhões. Ou seja, Romeu Zema não arrumou as finanças do Estado; governou com base na liminar conseguida no STF pelo governo Fernando Pimentel, de suspensão do pagamento da dívida de Minas Gerais; se a liminar cair, o Estado quebra no dia seguinte, tendo que arcar com o pagamento imediato das parcelas não pagas de R$ 39 bilhões e mais R$ 9 bilhões por ano.

Já os investimentos do acordo da Vale são expressivos, mas são promessas futuras que só serão entregues depois de muitos anos; e é até provável que alguns dos investimentos previstos rendam desgastes para o governador, como é o caso do traçado do Rodoanel.
A aliança de Kalil com Lula vai colocar uma grande centralidade da campanha na questão social, no Estado mais desigual do Sudeste, em contraposição ao “privatiza tudo” e à enorme insensibilidade social do Romeu Zema e do Partido Novo.

Finalmente, o “arranjo político” da candidatura de Romeu Zema também tem muitas fragilidades. Ele jura fidelidade ao candidato a presidente do partido Novo, Luís Felipe D’Ávila, um presidenciável com traço nas pesquisas, mas já o “cristianizou” desde sempre, sendo que o objetivo é a manutenção de um vínculo informal com Bolsonaro para herdar os votos à direita. Com esta estratégia, Romeu Zema corre o risco de desagradar os dois lados: não é suficientemente bolsonarista para ter os votos dos bolsonaristas e nem antibolsonarista para ter o voto dos eleitores contrários a Bolsonaro.

Romeu Zema quer atrair parte do eleitorado lulista, sem o qual não ganha a eleição, buscando uma aliança com os prefeitos do interior, em função da retomada dos repasses aos municípios, através do voto “Luzema”. Duvidosa esta estratégia. Prefeitos do interior têm um peso decisivo na eleição de deputados, devido à relação estreita que os parlamentares têm com os municípios, com repasses de verbas, mas dificilmente conseguem “municipalizar” eleições majoritárias para o governo do Estado e para a Presidência da República. Claro que prefeitos podem ajudar candidatos a governador e presidente, mas desde que embarquem na “onda dominante”, e se essa “onda” for o antibolsonarismo, Romeu Zema poderá ser atropelado por Alexandre Kalil, mesmo tendo o apoio maciço dos prefeitos do interior e até de uma coligação mais ampla, como está buscando construir.

Claro que as fragilidades de Romeu Zema não vão por si sós derrotá-lo; isto vai depender da potência da candidatura de Alexandre Kalil, o que é assunto para outro artigo.

José Prata Araújo é economista e especialista em direitos sociais.

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Wallace Oliveira