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Tarifa zero: entre a utopia e a prática

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O que os municípios que passaram a adotar a tarifa zero nos mostra é que o poder público pode mudar seu lugar nessa relação de forças e ter mais controle do sistema - Divulgação
O horizonte utópico nos guia na busca da superação das barreiras de acesso e vivência nas cidades

Apontando para o caminho entre a utopia e a realidade concreta, Annie Oviedo, do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e militante do Tarifa Zero BH abriu a segunda edição do encontro “Transporte como direito e caminhos para a tarifa zero”, que ocorreu em Belo Horizonte e em Caeté, nos dias 20 a 23 de julho de 2022. O evento realizou debates sobre os modelos ideais para a superação de desigualdades enraizadas em nossas cidades, além do encontro com gestores de cidades que, de fato, implementaram o transporte gratuito em seus municípios.

O horizonte utópico é o que nos guia na busca da superação das barreiras de acesso e vivência nas cidades. Mas ele também pode ser experimentado na prática (e, portanto, com limitações) nas cidades que adotaram esse modelo a partir do entendimento dos seus gestores de que a cobrança da tarifa é, por diversos motivos, insustentável.

A política do uso dos ônibus, metrôs, trens e balsas de graça, ou a tarifa zero, carrega consigo uma série de transformações que lutamos para serem concretizadas. A desmercantilização dos transportes é a desmercantilização da vida cotidiana, já que o acesso à cidade é condição de existência e de qualidade de vida para todos nós. A cidade não é a mesma para todos os perfis e, hoje, quem usa o transporte público é cada vez mais marginalizado no espaço urbano.

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Assim, além da superação das barreiras de classe, a luta pela tarifa zero só faz sentido se trouxer consigo uma perspectiva interseccional, tema abordado de forma recorrente durante o evento. Lisandra Mara, pesquisadora do Africanidades BH (UFMG), apontou que a segregação socioespacial no Brasil não é acidental, mas consequência de tomadas de decisões orquestradas pelas oligarquias brasileiras. Temos uma hierarquização social com base em gênero, raça, economia e questões de classe. A militante do Movimento Passe Livre de São Paulo Millena Nascimento também falou sobre o assunto. “A tarifa é uma violência cotidiana e uma violência que foi sendo aceita socialmente, que é excludente para vários corpos”, disse.

Diminuição das desigualdades

A política de tarifa zero tem a sensibilidade de colocar como prioritárias pessoas que historicamente são segregadas no espaço urbano. Contudo, ela não dá conta de todos os elementos de violência sobre os corpos negros, femininos, LGBTQIA+, com deficiência, jovens e periféricos. O uso cada vez mais frequente de motos pelos jovens negros, que são a maioria no trabalho nos aplicativos, foi levantado por Daniel Caribé, do Observatório da Mobilidade de Salvador, como um elemento a mais da violência segregadora que ocorre na mobilidade urbana.

É nesse momento que podemos passar da utopia para a prática. E dos modelos ideais para as contradições de sua implementação. Afinal, por se tratar de apenas um segmento da vida e do direito à cidade, a tarifa zero irá esbarrar nas condições desiguais estruturais da sociedade brasileira.

A “banalização da tarifa zero”, termo usado por Lucio Gregori, ex-secretário municipal de Transporte de São Paulo e idealizador da tarifa zero ainda nos anos 1990, foi muito debatida por nós. Isto é, os municípios de pequeno e médio porte, felizmente, estão vendo a gratuidade como uma solução plausível para a crise sistêmica em que o transporte público se encontra. Isso já é um avanço na garantia prática da mobilidade e da qualidade de vida das pessoas. E isso pode levar a um aumento da pressão para que municípios maiores passem a adotar a política.

A forma de implementação dessa política, entretanto, pode contribuir mais ou menos para a modificação das estruturas de poder na gestão do transporte urbano. Afinal, o debate sobre de onde virão os recursos financeiros, como eles serão repassados e quem irá operar um sistema de gratuidade universal são essenciais para a mudança das estruturas de poder no trânsito. 

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Hoje há, sem dúvidas, uma disparidade de poderes entre empresários, gestores e passageiros do sistema de transporte público. Quem opera o sistema de transporte público nas cidades tem muito poder em suas mãos. Quem detém o controle financeiro e operacional do transporte público atualmente são as empresas de ônibus. Elas têm a frota, os dados operacionais, as garagens, os trabalhadores rodoviários e o dinheiro. Elas têm o poder de fazer a cidade parar se tirarem os ônibus de circulação – única condição de deslocamento para muitos de seus usuários.

Os gestores abriram mão do controle financeiro e muitas vezes operacional do sistema. E os passageiros querem cada vez mais cumprir com o significado do seu nome: que sua permanência no sistema público de transporte seja cada vez mais passageira e que consigam soluções individuais e privadas de transporte.

O que os municípios que passaram a adotar a tarifa zero nos mostra é que o poder público pode mudar seu lugar nessa relação de forças e ter mais controle do sistema. E, para que essa construção seja cada vez mais democrática, é necessário que os usuários e trabalhadores do sistema também tenham voz e poder decisório sobre sua qualidade e operação.

Para a retomada do caráter público e coletivo do transporte, é necessário quebrar a concentração de poder que o setor privado tem sobre os fluxos dos corpos e espaços nas cidades, para que possamos voltar para a utopia da cidade sem catracas.

Letícia Birchal Domingues é integrante do Tarifa Zero BH e doutoranda em Ciência Política pela UFMG

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Larissa Costa