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Do Teto ao voto: o panorama da política fiscal brasileira e as (in)certezas para 2023

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Divulgação - TSE
Movimento eleitoreiro do governo gera dificuldades fiscais para quem assumir em 2023

Um capítulo importante da história recente da economia brasileira é dado pelo início das medidas de corte de gastos públicos, revertendo um quadro de ampliação da oferta de serviços sociais básicos. Para ser mais preciso, essa virada coincide com a chegada de 2015. Naquele momento, todos os olhares estavam voltados para o déficit do resultado primário do setor público, acompanhado pelo aumento da dívida e queda dos investimentos.

Os resultados pioraram em 2016, pois as medidas austeras, seja pelo lado do corte de gastos, seja pelo aumento da tributação e suspensão de controle de preços administrados, não lograram êxito. Assim, foi aprovada a Emenda Constitucional (EC) 95/2016, também conhecida como teto de gastos, que estabeleceu a estagnação real das despesas primárias da União no horizonte de vinte anos, a partir de 2017.

De lá pra cá, é pertinente analisar a relação entre a política fiscal brasileira e o desempenho econômico do país, tendo em vista a mudança de governo e o atravessamento de um período calamitoso causado pelo coronavirus (Covid-19). Nas vésperas das eleições para o governo de 2023, aspectos do descontrole das contas públicas que levaram à oficialização da austeridade fiscal em 2016 estão novamente em cena – alguns de forma idêntica, como o caso da redução de PIS/Cofins sobre combustíveis e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) –  outros extraordinários, como o auxílio emergencial e os repasses para o Congresso Nacional.

Este texto busca recapitular um tópico em desuso desde que o tal Teto de Gastos dera sinais de ter sido a solução para a instabilidade macroeconômica do Brasil. A austeridade, bem como suas políticas de acompanhamento (reformas liberais), não tardará a voltar para o centro do debate econômico do país, que haverá de lidar com a conta dos excessos eleitoreiros sem a segurança de um financiamento minimamente progressista (e de uma economia estável).

Austeridade fiscal: o que é, como se faz

Primeiramente, é necessário destacar que a compreensão de austeridade fiscal não deve se limitar à disciplina fiscal, isto é, a tentativa de manter um controle rigoroso dos gastos do governo e suas receitas fiscais, ainda que sob ameaça ou vigência de déficits orçamentários. Tampouco deve ser interpretada como orçamento equilibrado ou mesmo excedente orçamental, uma vez que esses resultados podem ser alcançados em períodos de crescimento econômico sem qualquer sacrifício particular. Ela é, portanto, a medida de compensação do orçamento para reduzir a dívida pública e problemas associados (pressão sobre a taxa de juros e inflação, por exemplo) no contexto de crise ou recessão.

De maneira geral, esses planos de consolidação consistem em uma sequência de ações decididas a partir do momento em que é adotada uma lei orçamentária. Eles podem ser caracterizados pelo corte de gastos públicos, aumento da tributação ou pela combinação de ambos. As legislaturas usualmente começam a debater o tamanho geral de um ajuste e depois discutem sua composição: em quanto cortar os gastos (e quais programas) e quanto aumentar os impostos (e quais). No Brasil, a Emenda Constitucional 95/2016, que ficou conhecida como “Teto de Gastos”, determinou a estagnação real das despesas primárias da União no horizonte de vinte anos, a partir de 2017.

As opiniões iniciais a respeito do Teto de Gastos

Os defensores da austeridade fiscal brasileira experimentada nos últimos anos argumentam que a limitação do crescimento do gasto instituído pela EC 95/2016 teria atuado em prol da solvência fiscal nos primeiros anos de sua implementação (podemos dizer até a ocorrência da pandemia), tendo em vista o cenário deteriorado da meta de resultado primário, beneficiando a dinâmica dos juros e da inflação e concedendo tempo para as autoridades conduzirem as medidas necessárias ao controle da trajetória da dívida pública. Em outras palavras, o argumento dos autores propensos a essa estratégia baseia-se na ideia de que, na ausência de uma regra de política fiscal sólida, as incertezas associadas ao cenário macroeconômico e os desequilíbrios estruturais podem impedir que as economias cresçam em todo o seu potencial

Em defesa da atuação do setor público, houve quem argumentasse contra a política de austeridade estabelecida por meio do Teto, uma vez que, em uma trajetória de crescimento real do produto nacional, isso significaria redução da participação da saúde, educação e investimento público dos gastos federais. Esse argumento ganhou quorum à medida em que persistia a elevada capacidade ociosa e desemprego, nos anos que se sucederam a implementação.

Houve também quem questionasse a factibilidade da proposta da emenda, contrastada com uma série de despesas expansivas ou incomprimíveis do Poder Executivo, como gastos compostos por rubricas que crescem em termos reais por força de determinações constitucionais ou legais. As despesas obrigatórias ou rígidas, como os benefícios previdenciários do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), as transferências da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), o seguro desemprego, o abono salarial e o Programa Bolsa Família, tendem a crescer de forma expressiva, seja por razões demográficas, políticas, por atrelamento legal ao salário mínimo ou mesmo pelo comportamento do mercado de trabalho.

A chegada da pandemia e a inversão de valores

A chegada da pandemia provocada pela Covid-19 colocou em xeque a responsabilidade das lideranças políticas perante a crise multissistêmica anunciada. Entre estratégias mais comprometidas e aquelas mais displicentes, o Brasil, pior país no ranking de eficácia no combate ao vírus (segundo dados do Lowy Institute, de 2021), faz parte do segundo grupo. Logo de início, adotou-se entre representantes do Executivo um dilema um tanto quanto perverso: salvar vidas ou a economia.

Atualmente, no país, já se sabe que o enfrentamento da pandemia foi marcado por metáforas pouco convincentes e manutenção, inicialmente, do rigor fiscal.  Ancorado na premissa de que os gastos emergenciais comprometeriam a confiança do mercado – negligenciando o papel do Estado quanto ao controle da calamidade, principalmente com relação ao cuidado da população mais vulnerável (o auxílio emergencial nos moldes do que foi aprovado partiu da oposição, no Congresso) –  o país foi um dos mais afetados também pela “segunda onda” do vírus.  Esse momento coincidiu justamente com o fim do auxílio financeiro e precipitação geral quanto ao fim da pandemia, muito estimulada pelo descomprometimento do Governo Federal.

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Mas é importante lembrar que, subitamente, os inconvenientes causados pela necessidade de se enfrentar os problemas da pandemia logo se tornaram medidas que muito agregariam ao atual governo: podendo burlar o Teto de Gastos,  verificou-se o  aumento exponencial dos repasses para o Congresso (introdução da emenda do relator ou orçamento secreto) e a possibilidade de se jogar ao lado do auxílio financeiro – o Auxílio Brasil, novo programa do Governo, substituiu o consolidado programa Bolsa Família.

Com o fim do estado de calamidade pública, no entanto, o governo federal viu-se em situação apertada e procurou modificar normas relativas ao Teto de Gastos e ao pagamento de débitos de precatórios. Deu início, então, ao “estado de risco eleitoral”: a contundente aprovação da PEC Kamikaze.

O “pós-pandemia” e a campanha eleitoral: dissimulação geral

Contornando as restrições da legislação eleitoral, a Emenda Constitucional 15/2022  prolongou o estado de emergência do Brasil, destinando uma série de benefícios a setores castigados pela crise econômica provocada durante a gestão da pandemia. Segundo o próprio texto da Emenda, estão a ampliação do Auxílio Brasil (R$26 bilhões); a duplicação do vale-gás (R$1,05 bilhões), beneficiando aproximadamente 6 milhões de famílias que passaram a utilizar lenha para cozinhar; R$500 milhões para o programa Alimenta Brasil (substituto do Programa de Aquisição de Alimentos, criado 2003); voucher para aproximadamente 800 mil caminhoneiros no total de R$5,4 bilhões; auxílio para taxistas (R$2 bilhões) e motoristas (R$3,8 bi em subsídio para etanol) e transporte público gratuito de idosos (R$2,5 bi), totalizando uma despesa extra de aproximadamente R$41 bilhões até o fim de 2022.

Não é preciso comentar que esse movimento eleitoreiro possui o mesmo efeito colateral que a austeridade fiscal de outros tempos buscava combater: o aumento das despesas públicas, a desconfiança do mercado sobre a política fiscal; a pressão sobre a taxa de juros; o aumento da inflação; as dificuldades fiscais para quem quer que assuma o governo em 2023.

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Além disso, com relação aos repasses, a Comissão de Orçamento do Congresso aprovou, no fim de junho de 2022, o mecanismo que muda as regras para tornar obrigatória a liberação das emendas do relator/orçamento secreto (R$ 20 bilhões por ano), engessando o raio de manobra do Executivo em 2023. Ao mesmo tempo, somente no último mês de julho, o governo federal renunciou a aproximadamente R$10 bilhões em desonerações, sendo R$2 bilhões  de PIS/Cofins sobre combustíveis e mais dois bilhões em Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).

O Teto de Gastos que teve início em 2017 pode ter agido como uma âncora para as expectativas. No entanto, contribuiu para atracar, também, o crescimento do país. Hoje, discute-se a manutenção das práticas que desabilitaram o modo austero justamente nos meses que antecedem a eleição presidencial. Após o fim da EC 15/2022, que tem seus dias contados, e das medidas eleitoreiras, o Teto de Gastos poderá ser restaurado em sua forma original ou descartado. Se descartado, o alerta dos problemas do endividamento, que adormecia desde sua implementação, reacende; se mantido, deixa em suspense o que poderiam ser as cenas de um próximo capítulo (ou de uma próxima coluna): haverá reforma tributária para financiar o “compromisso social” e, ainda, “impulsionar nossas fábricas” em 2023?

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Guilherme Silva Cardoso é doutorando do Programa de Economia do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Reginal (Cedeplar-UFMG) e sócio fundador do Instituto Economias e Planejamento. Atualmente, encontra-se em período de doutorado-sanduíche (CAPES – PrInt UFMG) no Centre for Policy Studies (Victoria University), Austrália.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Wallace Oliveira