Minas Gerais

Coluna

Artigo | 4 anos do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho: mudanças não virão de cima

Imagem de perfil do Colunistaesd
"Com certeza estamos mais fortes do que naquele dia 25 de janeiro de 2019" - Foto: Francisco Kelvim / MAB
Desorganização popular em territórios de empreendimentos minerários é um projeto institucional

Passados 4 anos do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, a lista de violações de direitos humanos e da natureza na região, de mais de 26 municípios, com população afetada de aproximadamente 1 milhão de pessoas, é infindável.

Estamos falando de corpos ainda não encontrados, do controle do processo de reparação pela mineradora, do estabelecimento de um acordo bilionário com o Estado sem a participação dos atingidos, da insegurança hídrica na bacia do Paraopeba, da contaminação de crianças e adultos por metais pesados acima do parâmetro aceitável, da descoberta de superbactérias resistentes a antibióticos no rio Paraopeba, da não reparação socioambiental, de centenas de agricultores familiares sem assistência, do recorde de lucros da Vale em 2021, de milhares de reais investidos em propagandas enganosas, do aumento da depressão e do consumo de antidepressivos e ansiolíticos, do aumento dos casos de suicídios na região, entre outros.

:: Especial | Rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho (MG), completa 4 anos ::

Mas esse artigo não é pra falar dos danos. Esse artigo é pra falar do surgimento de grupos organizados no território, do fortalecimento das organizações da sociedade civil, do empoderamento e da auto-organização dos atingidos desde 2019.

Diante de tanta frustração, violência e descrédito nas autoridades, os atingidos têm se apropriado cada vez mais de seus direitos e exigido dos órgãos públicos e da empresa criminosa que sejam tomadas as devidas providências. Nós olhamos para as nossas próprias mãos e percebemos que ninguém pode nos defender melhor do que nós mesmos.

Durante o ensino fundamental, tive a oportunidade de participar de um projeto voltado para juventude, financiado pela Vale. Esse projeto era desenvolvido em parceria com as escolas do município de Brumadinho. Até hoje me lembro de sentir gratidão à Vale por ter acesso a cartazes coloridos, canetinhas e tintas. Quem frequentou ou frequenta o ensino público sabe que esses materiais não fazem parte da nossa realidade. Eu fui criada para sentir raiva do Estado, por não proporcionar os materiais adequados, e gratidão com a Vale, pela oportunidade de poder brincar com tinta.

Desde 2019, foram criadas inúmeras comissões de atingidos, organizações religiosas, coletivos, fóruns, associações, jornais comunitários e movimentos sociais

É importante mencionar que Brumadinho, assim como outras cidades do estado de Minas Gerais com relações históricas de minério dependência com grandes mineradoras, é caracterizada por um baixo nível de organicidade popular. Isso pode ser percebido por meio da dificuldade de mobilização e articulação por parte de sindicatos, assim como de organizações estudantis.

Sabe-se que essa dificuldade de organização pela defesa dos direitos não é uma mera coincidência. Pelo contrário, faz parte da prática deliberada de mineradoras que incorporam nas suas estratégias corporativas a cooptação e diferentes mecanismos de contenção do poder popular. Isto é, a desorganização popular em territórios que abrigam empreendimentos minerários é um projeto institucional. No entanto, essa realidade vem se alterando.

Organização popular

Desde 2019, foram criadas inúmeras comissões de atingidos, organizações religiosas, coletivos, fóruns, associações, jornais comunitários e movimentos sociais. Esses grupos se reúnem periodicamente desde o rompimento da barragem. É comum que muitas lideranças comunitárias participem de 3 ou mais reuniões por dia. Os assuntos são diversos, mas o principal deles é: definir estratégias de como pressionar a Vale e o Estado para que os responsáveis atendam as demandas de reparação das comunidades.

Os familiares das vítimas, por exemplo, criaram uma associação própria para lutar pelo encontro, pela memória e pela justiça – a AVABRUM. Desde então, pessoas e trabalhadores comuns têm aprendido a se reunir com bombeiros, governador, deputados, senadores e representantes da Vale para exigir que este crime nunca mais se repita.

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::

A situação é semelhante em relação à Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Depois do rompimento da barragem, leigos e leigas se organizaram na arrecadação e distribuição de doações, mas a auto-organização eclesial não parou por aí. Leigos se organizaram para criar uma equipe de trabalho fixa para acompanhar as comunidades atingidas da região.

Muitas associações comunitárias que antes eram abandonadas, hoje se consolidaram em seus territórios e desenvolvem projetos com foco em crianças, mulheres e idosos, além de organizar reuniões e buscar melhorias para as suas comunidades.

Podemos destacar, por exemplo, a criação de várias plataformas de encontros como o Paraopeba Participa, o Coletivo de Atingidos de Brumadinho, o Fórum de Atingidos, entre outros.

Em 2022, mais uma vez, esses grupos tiveram que reunir forças para enfrentar a terrível enchente

Além da criação de novos espaços, movimentos sociais que já existiam anteriormente ao rompimento da barragem continuaram trabalhando ativamente na resistência às violações de direitos na região, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o Movimento pela Soberania Popular na Mineração e o Movimento dos Atingidos por Barragens.

Esses grupos, coletivos e movimentos participaram e organizaram audiências públicas, fizeram denuncias a nível nacional e internacional, produziram estudos independentes, organizaram atividades entre outros. Mesmo durante a pandemia, enfrentando todos os problemas possíveis como a falta de equipamento de proteção individual e de álcool em gel, a dificuldade de conexão de internet para reuniões virtuais, a falta de transporte público para participar de atividades presenciais, a falta de estrutura para realizar as reuniões, a jornada dupla de trabalho para homens (trabalho e reuniões comunitárias) e tripla ou quadrupla para as mulheres (trabalho, casa, filhos e reuniões comunitárias), a dificuldade de garantir renda, tempo e saúde suficiente para acompanhar o processo de reparação.

Em 2022, mais uma vez, esses grupos tiveram que reunir forças para enfrentar a terrível enchente que mais uma vez trouxe os rejeitos da barragem que estavam no Rio Paraopeba para dentro de nossas casas. A mancha da lama ocupou regiões que antes não haviam sido diretamente atingidas pelo rejeito.

Vai ter um dia em que os poderosos cairão por terra

São quatro anos e dezenas de atos dos familiares das vítimas, protestos, audiências públicas, conferências internacionais, manifestações na porta do Tribunal de Justiça e do Ministério Público, fechamentos de vias e de entradas da mineradora Vale e Romarias pela Ecologia Integral em memória às vítimas vêm sendo realizadas. Muitos atingidos hoje, ironicamente, respondem processos acusados pela Vale, pelo simples motivo de terem participado de protestos contra a mineradora. Muitos atingidos tiveram que se afastar do território momentaneamente por questões de segurança. Muitos atingidos fazem parte de programas de proteção local, nacional e internacional.

Com certeza estamos mais fortes do que naquele dia 25 de janeiro de 2019

Infelizmente as pautas dos atingidos já não são mais tão comerciais e só atraem a cobertura da mídia burguesa em datas do aniversário do crime. No dia 25 de janeiro deste ano, completam-se 4 anos do rompimento da barragem e a única certeza que temos é que no mês que vem, dia 25 de fevereiro teremos mais um ato por justiça e memória. Ao longo de 2023 teremos mais centenas de reuniões com autoridades, assessorias técnicas, consultorias, universidades, pesquisadores.

Muitas dessas atividades não trarão nenhum resultado concreto para as nossas vidas, mas estamos acumulando forças e aprendizados. Com certeza estamos mais fortes do que naquele dia 25 de janeiro de 2019.

Se por um lado a empresa procura manter seu domínio por meio de sua narrativa de reparação – sendo que esta acontece também de forma violenta -; por outro identificamos atores da resistência. No capitalismo, por mais que se invista no controle, há algo que escapa ao seu domínio, algo que nasce da dor, da miséria, da devastação que ele mesmo causa.

Talvez não seja nesse ano, mas vai ter um dia em que os poderosos cairão por terra

Sem ilusões de que a mudança virá de cima. Mas pacientes, porque sabemos que estamos lutando por mudanças estruturais e isso leva tempo. Um pouco mais adoecidos, mas ao mesmo tempo muito mais capazes, aprendendo a ser feliz entre uma reunião e outra. Talvez não seja nesse ano, mas vai ter um dia em que os poderosos cairão por terra, em que a vida do nosso povo será mais importante do que os lucros de menos de 1% da população mundial.

Enquanto isso, continuaremos acumulando forças e fazendo nossos movimentos populares...

Marina Paula Oliveira é autora do livro “O preço de um crime socioambiental: os bastidores do processo de reparação do rompimento da barragem em Brumadinho”. Graduada, mestre e doutoranda em Relações Internacionais pela PUC-Minas e defensora de direitos humanos, participa de movimentos populares e atua como assessora da Conferência dos Bispos da União Europeia (COMECE). É assessora do Grupo de Reflexão e Trabalho para a Economia de Francisco e Clara da PUC-Minas e participou do encontro global com o Papa Francisco.

----

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

----

Leia outros artigos da coluna de Marina Paula Oliveira aqui.

Edição: Elis Almeida