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Artigo | O caso Americanas: iniciativa privada é bom modelo de gestão?

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"Já passou da hora, entretanto, de parar de considerar a gestão corporativa privada como modelo pronto, perfeito, para o setor público" - Foto: Sindec
Gestão corporativa não é modelo para o setor público

“Privatiza que resolve”! Já ouvimos muito essa tola e mentirosa frase, postulando a privatização como panaceia para corrupção, incompetência e outros males. A visão de mundo neoliberal, incutida na cabeça de milhões de brasileiros pela maior parte da mídia empresarial, apresenta o Estado como vetor de corrupção e ineficiência, e a iniciativa privada como espaço de lisura e competência.

O recente escândalo das Lojas Americanas demonstra, pela enésima vez, que não há base real para essa visão. É pura ideologia, no sentido definido por Karl Marx: conjunto de ideias, discursos, valores, que legitimam socialmente os interesses da classe dominante ao fingir que esses interesses são gerais, disfarçando seu caráter particular e, geralmente, danoso ao interesse público.

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A demonização do Estado e o enaltecimento da iniciativa privada tem sido uma das operações ideológicas mais bem-sucedidas dos donos do poder no Brasil.

Apresentado oficialmente como ‘inconsistência contábil”, o rombo nas Lojas Americanas foi da ordem de R$ 20 bilhões. Essa situação escabrosa afetará milhares de empregados, fornecedores, acionistas, credores etc. Espanta o fato de um desfalque dessa dimensão, que, obviamente, não se constrói da noite para o dia, não ter sido detectado por executivos e conselho administrativo da empresa, pela Comissão de Valores Mobiliários da Bolsa de Valores, ou por auditorias como a da PriceWaterHouse, uma das maiores firmas de auditoria do mundo, que auditava e chancelava os balanços contábeis da empresa.

Os especialistas apontam incompetência ou fraude – possivelmente ambas

Ninguém viu?

Não foi incompetência, mas fraude, segundo o BTG Pactual, um dos vários bancos credores da empresa. Na petição que apresentou à Justiça, pedindo a suspensão da liminar que as Lojas Americanas obtiveram protegendo-as dos credores, o banco acusou: “A situação nasce de uma fraude premeditada, que vem sendo cultivada durante anos e que só foi divulgada após a blindagem do patrimônio dos responsáveis pela falcatrua”.

Os sócios majoritários das Lojas Americanas são o trio de bilionários Marcel Hermann Telle e Jorge Paulo Lemman, três dos homens mais ricos do Brasil, que detém, através da 3G, um império econômico-financeiro que inclui a Ambev, Kraft Heinz, Burger King e que, há pouco, tornou-se o maior acionista preferencial da privatizada Eletrobrás.


Americanas têm mais de 1.700 lojas no país e cerca de 18 mil funcionários / Divulgação

Embora, como afirma ironicamente a petição do BTG Pactual, esses três sejam “ungidos como uma espécie de semideuses do capitalismo mundial ‘do bem’”, o modelo de negócios e de gestão corporativa do trio é, no mínimo, controverso. A criação da Ambev, com a fusão de duas das maiores empresas de bebida brasileiras, permitiu à nova corporação controlar a maior parte do mercado, atentando contra a livre concorrência; o modelo de gestão de pessoal da Ambev foi acusado de abusar de práticas de assédio; e a compra da Eletrobrás tem sido considerada duplamente lesiva ao interesse público: pelo setor de energia ser estratégico para a população, a economia e a soberania do país, sendo um risco ficar sob interesses privados. E pelo preço aviltado pelo qual a 3G adquiriu o controle da empresa.

Finalmente, no caso das Americanas, os especialistas apontam incompetência ou fraude – possivelmente ambas. Não sejamos, porém, injustos, generalizando para toda a iniciativa privada a incompetência e a fraude – como o fazem, absurda e mentirosamente, para o setor público.

Democratiza que resolve

Já passou da hora, entretanto, de parar de considerar a gestão corporativa privada como modelo pronto, perfeito, para o setor público. Claro que há princípios e procedimentos compartilhados entre a administração privada e a pública.

Mas há marcantes especificidades também. A maior delas, o fato de que enquanto o objetivo das empresas é o lucro, o objetivo do Estado é o interesse público, o bem comum. Quando enunciada, tal diferença parece óbvia. Mas, na prática, isso parece ser esquecido quando se implantam, no Estado, modelos de metas e de aferição de desempenho puramente quantitativos, e não raro impostos de cima. Como se os órgãos públicos fossem empresas para as quais só valem os números, os tais inputs e outputs, ou ainda quando se importam acriticamente, do universo corporativo, linguagens, métodos, teorias e pressupostos que nem sempre se adequam à administração pública.

Quanto à corrupção, a solução não é a privatização da economia. A solução é a democratização. A desigualdade, a assimetria aguda de recursos de poder (poder em suas várias e interligadas manifestações, política, econômica, social, cultural) entre os membros de uma sociedade é o principal fermento da corrupção. Quanto mais desigual uma sociedade, mais corruptos serão tanto o Estado quanto a iniciativa privada.

Não há, em uma sociedade desigual, iniciativa privada virtuosa e Estado perverso, ou vice-versa.

Democratiza que resolve! O lema deve ser este.

Rubens Goyatá Campante é doutor em Sociologia e pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (CERBRAS)

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Leia outros artigos de Rubens Goyatá Campante em sua coluna.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

Edição: Elis Almeida