Minas Gerais

CONJUNTURA

Artigo | Pela vida das mulheres: os desafios da retomada da democracia

O momento deve ser de ofensiva à misoginia, perspectiva que deve ser incorporada nas agendas políticas

Belo Horizonte (MG) | Brasil de Fato MG |
"As eleições de 2018 nos mostraram que precisávamos transformar nossa forma de lidar com a política" - Foto: Mídia NINJA

As eleições de 2022 foram decisivas para nos organizar para os próximos anos. O combate à extrema direita, que assumiu um caráter fascista, foi a agenda central para que pudéssemos retomar os pilares básicos que constituem uma democracia. Para tanto, pesquisas eleitorais mostravam que seriam as mulheres as grandes definidoras da disputa eleitoral. E assim aconteceu. Foram pelas mãos das mulheres que derrotamos Bolsonaro e devolvemos a cadeira da Presidência para Lula.

Entretanto, o bolsonarismo segue seu curso e está longe de terminar. Bolsonaro foi derrotado nas urnas, mas o bolsonarismo segue enraizado em muitas Câmaras estaduais e municipais. A radicalização da política brasileira ganha fortes contornos a partir do golpe contra Dilma Rousseff, marcado pelo machismo e pelo saudosismo à ditadura militar. Nessa época, ocorre uma onda de ódio contra o Partido dos Trabalhadores e a esquerda política como um todo.

Atual governo bate recordes de representatividade, com 11 mulheres nomeadas para os ministérios

Desde então, uma ofensiva machista se apropriou do nosso país. O avanço de políticas “antigênero”, o endurecimento sobre direitos reprodutivos e o aumento vertiginoso da violência de gênero assolaram nosso país. As mulheres se tornaram o principal alvo da extrema-direita, dando espaço para o aumento do masculinismo e da naturalização do machismo.

As eleições de 2018 nos mostraram que precisávamos transformar nossa forma de lidar com a política. As tecnologias da informação e o acesso popularizado a aplicativos de mensagens foram fundamentais para a disseminação de notícias falsas, definindo o resultado eleitoral e político do nosso país.

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Debates como “mamadeira de piroca”, “kit gay” e “ideologia de gênero” trouxeram à tona a capacidade da extrema-direita de controlar corpos femininos, corpos de toda a comunidade LGBTQIA+ e de negras e negros, colocando em xeque a diversidade e criminalizando o que fugia à supremacia branca, hetero e cisnormativa. 

A negação aos direitos das mulheres pode ser observada a partir de ações do governo Bolsonaro, seja reduzindo os investimentos em políticas sociais, seja por meio dos discursos que legitimavam ações masculinistas em nosso cotidiano. Bolsonaro e o bolsonarismo sentem e estimulam o ódio pelas mulheres.

Aumento da fome e da desigualdade

O enfurecimento ao feminino se apresentou em formas que afetaram diretamente a vida de todas. A primeira, por exemplo, diz respeito à fome. Casas chefiadas por mulheres se tornaram as mais empobrecidas, ou seja, a cada dez casas chefiadas por mulheres, seis estavam em situação de insegurança alimentar.

Outro ponto é a educação dos filhos e filhas, ligada à tarefa do cuidado, já que Bolsonaro cortou verbas para creches. Essa medida atinge diretamente as mulheres pois, sabemos que o trabalho de cuidados é naturalizado como parte do universo feminino, acarretando precarização dos trabalhos remunerados, visto que a demanda da esfera privada cresce e, por vezes, ocorre a saída das mulheres do mercado de trabalho por ficarem saturadas com o acúmulo dos trabalhos remunerados e não remunerados.


Mulher segura a Carteira de Trabalho - emprego, desemprego, desigualdade de gênero / Reprodução

É o que as feministas historicamente denunciam, quando dizem sobre a dupla ou a tripla jornada de trabalho das mulheres. Dessa forma, cuidar de crianças e idosos se torna tarefa principal por toda caracterização machista sobre “ser mulher”. Os cortes também se estendem para as políticas de combate às violências contra as mulheres.

Violência contra meninas e mulheres

Outro ponto a ser considerado é que Bolsonaro disseminou discursos pedófilos, como quando alegou que “pintou um clima” com uma menina de 14 anos.  Isso nos mostra a verdadeira face do neoconservadorismo que é moralista, fundamentalista na religião, mas que não vê em falas como essa a violência legitimada contra menores de idade.

Pelo contrário, constrói a narrativa da possibilidade de violar os corpos de meninas e adolescentes sem o menor pudor. Seguindo essa linha, Bolsonaro convidou estrangeiros a transarem com brasileiras em abril de 2019: “quem quiser vir aqui fazer sexo com mulher, fique à vontade”, disse, reforçando o estereótipo da mulher brasileira sexualizada e reduzida a um objeto de desejo, que deve estar à disposição dos homens.

Essas atitudes demonstram como a vida das mulheres foi precarizada durante esse período. A estrutura patriarcal, racista e lgbtfóbica é secular, mas, por anos, se fortaleceu graças aos dois últimos chefes de Estado. Como disse Simone Beauvoir, “nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”.

Há resistência e esperança

É nesse cenário de medo que, ainda assim, as mulheres permanecem organizadas, em luta cotidiana contra o fascismo, anteriormente institucionalizado, e em busca da esperança. Sendo mais da metade da população, embora sub-representadas na política, foram as mulheres as responsáveis pela vitória de Lula que, com seu plano de governo, devolveu à população o direito de ter voz.

O atual governo bate recordes de representatividade, com 11 mulheres nomeadas para os ministérios, em destaque para o Ministério da Saúde, que nunca havia sido chefiado por uma mulher. Além disso, criou o Ministério da Igualdade Racial e dos Povos Originários, ambos encabeçados por mulheres.


Ministra da Saúde, Nísia Trindade planeja campanha de vacinação nacional a partir de fevereiro / Fernando Frazão/Agência Brasil

As reivindicações das mulheres nesse novo governo e a resposta dele às demandas nos mostra que a democracia tem retomado seu posto, ainda que falte muito para que seja plena. Para que esse caminho continue sendo possível, é necessário que o projeto feminista emancipatório seja alicerçado na institucionalidade em conjunto com os movimentos sociais e toda a classe trabalhadora.

Esse projeto precisa ter a capacidade de recuperar os desmontes que o país vem sofrendo desde 2016. Portanto, para transformar o país, será necessário construir esse projeto com as bandeiras e a luta das mulheres, em perspectiva feminista, antirracista e anticapitalista.

Bandeiras de luta

Uma dessas bandeiras fundamentais é a economia feminista, alternativa à esquerda contra o capitalismo. Por isso, é necessário estabelecer outras formas de organização da economia, que se contraponham ao lucro e se articulem com experiências de agroecologia e economia solidária, pautadas na perspectiva de se lograr soberania alimentar.

As mulheres trabalham em tempo integral no mercado de trabalho e dentro de suas casas, cuidando de suas famílias, sobrecarregando suas vidas, o que as impede de conquistarem seus objetivos de vida. Essa dicotomia entre o trabalho remunerado e não remunerado deve ser eliminada para construirmos uma nova forma de reprodução da vida.

A retomada da democracia faz parte do que podemos chamar de ofensiva à misoginia

Nesse sentido, o projeto de reconstrução do Brasil deve ter como prioridade a construção de políticas públicas que relacionem a vida pública e a privada, entregando ao Estado e ao conjunto da sociedade, não apenas às mulheres, a responsabilidade sobre as tarefas do cuidado.

É necessário pautar as discussões sobre os direitos sexuais reprodutivos, a igualdade de salários de homens e mulheres; o compartilhamento do trabalho doméstico com todos os indivíduos e o Estado, construindo lavanderias, creches e refeitórios públicos; e uma série de outros aspectos que dariam às mulheres emancipação e entregaria ao Estado suas obrigações.

Esses movimentos são centrais, visto que garante a reorganização do cotidiano de toda sociedade, garantindo a transformação de como vemos hoje o trabalho reprodutivo e do cuidado que, como já mencionamos, é assumido majoritariamente pelas mulheres.

Zema representa o bolsonarismo

Em Minas Gerais, a luta das mulheres ganha um adendo, visto que Romeu Zema (Novo) tem buscado espaço nacional para pautar o bolsonarismo e dar sequência ao seu legado. As mulheres mineiras negam esse governo que, assim como o bolsonarismo, rejeita os direitos femininos, ignora a classe trabalhadora não cumprindo com o piso salarial da educação, que conta com profissionais majoritariamente mulheres, e entrega os bens comuns ao capital privado.

Além disso, aprovou a reforma da Previdência estadual, aumentando o tempo de serviço. Minas Gerais carece de campanhas de combate à violência de gênero, sofre com a baixa divulgação e investimento nos meios de acolhimento, informações e políticas específicas para essa parcela da população violentada.

Por fim, a retomada da democracia faz parte do que podemos chamar de ofensiva à misoginia. Deve ser vista e incorporada nas agendas políticas e nas organizações feministas. O combate às violências passa pela institucionalidade, mas, principalmente, pela participação social nesses espaços e com os movimentos sociais nas ruas, dialogando com a população sem ser criminalizado.

Bruna Camilo é cientista política e militante da Marcha Mundial das Mulheres.

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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

Edição: Larissa Costa