Minas Gerais

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Comunidades geraizeiras do Vale das Cancelas recebem visita do Ministério Público Federal

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O percurso durou três dias e passou pelos três núcleos do território geraizeiro do Vale das Cancelas: Lamarão, Tingui e Josenópolis - Foto: Reprodução
Foram visitadas áreas onde a empresa SAM pretende construir um complexo minerário

Entre os dias 21 e 23 de março, comunidades geraizeiras do Vale das Cancelas, no Norte de Minas, receberam a visita dos procuradores da República Helder Silva e Edmundo Dias. A visita foi requerida pelo Conselho Intermunicipal Comunitário do Território Tradicional Geraizeiros do Vale das Cancelas.

Segundo Adair Pereira de Almeida, membro do Conselho Geraizeiro, “o objetivo da visita foi levar ao conhecimento do Ministério Público Federal o que o povo geraizeiro sofre na pele, as violações ao território, ao meio ambiente e à saúde”.

Uma comitiva de geraizeiros e geraizeiras foi responsável por guiar a visita ao longo do território, atividade que contou também com a presença de entidades parceiras, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular. O Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) e representantes de mandatos parlamentares, de deputadas e deputados estaduais, como Leninha, Andréia de Jesus, Beatriz Cerqueira, Leleco e do deputado federal Padre João, também estiveram presentes.

Maria de Oliveira Mendes, que também faz parte do Conselho Geraizeiro, destacou que “a visita foi muito importante, pois expusemos nossas dificuldades. Também mostramos aos procuradores, para que pudessem ver com os próprios olhos, o que passamos no dia a dia”.

A visita

O percurso, que durou três dias passou, pelos três núcleos do território geraizeiro do Vale das Cancelas: Lamarão, Tingui e Josenópolis. Passou também pelas principais áreas de conflito, degradadas pela monocultura de eucalipto, pela mineração clandestina, por desmatamentos realizados pelas dezenas empresas e empreendimentos instalados de maneira irregular.

Entre as áreas degradadas, algumas envolvem cemitérios tradicionais utilizados pelas comunidades geraizeiras para sepultar seus ancestrais. As empresas não têm respeitado nem sequer este espaço sagrado para o território.

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Foram visitadas ainda áreas onde a empresa SAM (Sul Americana de Metais) pretende construir um complexo minerário com cava, barragem de rejeitos (a maior do Brasil, caso seja licenciada), barragem de água e outras estruturas. O empreendimento pretendido pela SAM, sobreposto ao território geraizeiro, visa realizar o transporte do minério por um mineroduto que, por sua vez, seria construído pela empresa Lótus e que poderá atingir inúmeros povos e comunidades tradicionais.

Os dois projetos (complexo minerário e mineroduto) estão em processo de licenciamento na Superintendência de Projetos Prioritários (Suppri) da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). Até o momento, não foi garantida pelo Estado de Minas Gerais, o direito à consulta garantido aos povos e comunidades pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Direitos violados

Em 2019, as comunidades iniciaram a construção do Protocolo Comunitário de Consulta com intuito de delimitar, junto ao Estado de Minas Gerais, como desejam ser consultadas acerca de qualquer medida que afetam seus territórios. Já foram realizadas pelo menos 15 oficinas em diversas comunidades. O protocolo de um dos núcleos está concluído e será lançado em breve

Principalmente ao longo da última década, as comunidades têm denunciado diversas violações de direitos humanos perpetradas pelas empresas no território geraizeiro. Instituições do sistema de Justiça, como a Defensoria Pública Estadual, Defensoria Pública da União, Ministério Público Estadual e Ministério Público Federal, têm acompanhado a situação de violações.

As comunidades geraizeiras ocupam o território tradicional há pelo menos sete gerações

No caso do Ministério Público Federal, os procuradores da República Helder Silva e Edmundo Dias possuem procedimentos em aberto para investigar essas violações. Os procedimentos são relativos à regularização fundiária, direito à consulta, entre outros assuntos.

“A visita dos procuradores foi muito importante para mim e para os geraizeiros. Os procuradores conheceram a realidade de cada um, olho a olho. É importante eles estarem junto dos geraizeiros para auxiliar na resolução dos problemas e das dificuldades”, disse Valdei Viana da Silva, também membro do Conselho Geraizeiro.

Ao final da visita foi entregue pelo Conselho um documento com síntese das principais demandas relativas a regularização fundiária; ao direito à memória e à tradicionalidade; ao enfrentamento aos grandes empreendimentos e garantia do direito à consulta; e à proteção de defensores de direitos humanos.

História

As comunidades geraizeiras ocupam o território tradicional há pelo menos sete gerações. A ocupação dessa região remonta, segundo os mais velhos, ao ano de 1780. Geraizeiros e geraizeiras são povos e comunidades tradicionais que ocupam os campos gerais do Norte do estado de Minas Gerais. São populações que vivem na região do cerrado e possuem um modo de vida próprio.

Originalmente, as comunidades geraizeiras viviam nas grotas e criavam o gado à solta nas chapadas. No entanto, a partir da década de 1960, políticas de “desenvolvimento” do estado de Minas Gerais incentivaram que monoculturas se espalhassem pelo território, especialmente o eucalipto, impedindo assim que o povo tradicional seguisse com seus modos de vida.

O território tradicional geraizeiro do Vale das Cancelas está dividido em três núcleos: Lamarão, Tingui e Josenópolis, totalizando 73 comunidades, distribuídas pelos municípios de Grão Mogol, Padre Carvalho e Josenópolis, todos na região Norte do Estado de Minas Gerais.

O relatório de autodemarcação feito pelas comunidades com apoio de parceiros delimitou 228 mil hectares de área. Em 2018, as comunidades receberam certificação da Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais, nos termos da Lei 21.147/2014 e do Decreto 47.289/2017.

Os povos e comunidades tradicionais recebem proteção normativa especial internacional e brasileira, como a própria Constituição Federal, o Decreto 6.040/2007 e o Decreto 10.088/2019, que inclui o anexo 72, da Convenção 169, da OIT. A Lei Estadual 21.147/2014 e o Decreto 47.289/2017 também fazem parte desse arcabouço.

Larissa Vieira é advogada popular, membra do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular (CMA), organização que presta assessoria jurídica popular a diversos grupos no campo e na cidade.

Luzia Alane é socióloga e agente da Comissão Pastoral da Terra.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

Edição: Larissa Costa