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O que está em jogo com o novo projeto que prevê apoio financeiro ao sistema de ônibus de BH

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"A partir das linhas e quadro de horários projetados, soma-se quantos quilômetros os ônibus vão rodar em 2023" - FOto: Karoline Barreto / CMBH
O subsídio tem que ser transparente, gerar eficiência e principalmente reforçar o controle público

Depois de quatro meses de tramitação, o projeto de lei que muda a forma de remuneração das empresas de ônibus urbano de Belo Horizonte virou a Lei 11.458, em 17 de março de 2023.

A lei vem depois de bastante pressão social e é uma das respostas que o poder público busca dar à profunda crise do transporte coletivo, pela qual passa o país já há alguns anos. A premissa básica é uma das bandeiras que o Tarifa Zero defende desde sua origem: que a remuneração dos ônibus deixe de ser por passageiro pagante e passe a ser por quilômetro rodado.

Antes dessa lei, o financiamento do sistema se dava apenas pela tarifa. Quanto mais passageiros rodando a catraca, mais dinheiro. Essa lógica, que vem do século passado, quando o ônibus era a única opção de transporte da população, pressupõe que os passageiros sejam suficientes para financiar o sistema. Não são mais. Há mais de 20 anos, a receita tarifária é insuficiente e faz com que as empresas pressionem por aumentos tarifários anuais, superlotando os ônibus nos horários de pico e retirando unilateralmente as viagens que dão prejuízo: horários noturnos, finais de semana, bairros mais distantes etc.

Essa longa e sistemática prática de abuso e desrespeito à população, por parte das empresas de ônibus e com a conivência do poder público, fez com que a maior parte das pessoas tivesse repulsa e associasse os ônibus a algo ruim, precário. Um prejuízo social de difícil reversão.

Mudança de perspectiva, mas com novos problemas

Pois bem, quando se propõe que o pagamento das empresas seja feito por quilômetro rodado, o que se quer é desmontar essa lógica perversa. Da ótica da empresa que presta o serviço, cada quilômetro que o ônibus percorrer terá o mesmo valor e remuneração: o quilômetro da linha do horário de pico, o quilômetro da linha do bairro distante, o quilômetro do busão da madrugada são todos iguais.

Isso significa que não há mais o incentivo para superlotação e corte de linhas. Os recursos para remuneração previstos são a receita tarifária, a receita extratarifária (venda de cartões, aluguel do sistema de bilhetagem eletrônica) e, justamente, o subsídio, que é o dinheiro vindo diretamente dos cofres da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), para cobrir o que faltar.

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É na parte do cálculo e pagamento do subsídio que começam os novos problemas da gestão do transporte público. Apesar da aprovação da Lei 11.458/2023, para que haja pagamento por quilômetro rodado, a prefeitura deve apresentar uma lei específica à Câmara Municipal de Belo Horizonte, para que o Legislativo autorize o gasto extra. A lei deve prever o valor máximo de recursos que a prefeitura está disposta a arcar no sistema de ônibus. Esse valor é baseado na projeção total de custos e receitas do sistema de ônibus.

É assim que é calculado: a partir das linhas e quadro de horários projetados, soma-se quantos quilômetros os ônibus vão rodar em 2023, coloca-se todos os custos com veículo, óleo diesel, pneu, funcionários, lucro etc. e chega-se num custo total. Desse custo, subtrai-se a receita tarifária e extratarifária que se imagina que as empresas terão e, pronto, tem-se o subsídio máximo estimado.

Pois então, a prefeitura apresentou uma nota técnica à Câmara estipulando que o subsídio para 2023 será de R$ 476 milhões, para que o sistema produza apenas 10% de quilômetros a mais do que em 2022, o que ainda é um valor 8% abaixo de 2017, antes da pandemia.

O cálculo apresentado pela prefeitura tem uma longa lista de problemas, dos quais vamos citar três grandes grupos:

1. Falta transparência: não foram divulgados os estudos prévios realizados para o cálculo, nem o valor dos preços ou de qualquer índice utilizado no cálculo do sistema. A prefeitura apenas divulgou uma tabela final, esperando que isso não seja questionado. A divulgação de dados, índices, preços, planilhas e metodologia é simples e fácil, como já fizemos em 2018 com o cálculo tarifário, que está até hoje disponibilizado aqui.

2. Falta enfrentar as empresas de ônibus: a prefeitura não esclarece, mas parece utilizar preços informados unilateralmente pelas empresas de ônibus. Ou seja, se as empresas são ineficientes, a PBH dará dinheiro para que continuem assim. O propósito de um cálculo de custos bem feito é justamente usar preços e índices que criem um custo estimado de eficiência no sistema, isto é, um valor de referência por quilômetro pelo qual as empresas se esforcem para cumprir, e quem for “preguiçoso” ou “ineficiente”, leva prejuízo.

3. Falta melhorar o busão de verdade: o subsídio está dimensionado para uma quilometragem um pouco maior que a de 2022, menor que a do período antes da pandemia. Não há estimativas de ganho adicional de receita nem de aumento de produtividade (como a inclusão de faixas exclusivas de ônibus). A prefeitura, na prática, está se propondo a dar R$ 500 milhões para as empresas de ônibus para que tudo continue como está.

Diante desse cenário, o que deve ser feito?

As empresas de ônibus já começaram sua famosa chantagem para pressionar por uma solução, exigindo que a tarifa suba para surreais R$ 6,90, caso o subsídio não seja pago.

A prefeitura se coloca numa posição preguiçosa, pouco propositiva, deliberadamente não dando transparência aos seus estudos e tentando jogar pressão política para a Câmara Municipal. A Câmara, por sua vez, quer lavar as mãos. Ao dar sinais de que a proposta de subsídio vai tramitar lentamente, a Câmara Municipal indica que já fez sua parte e torce para que a bomba do busão estoure no colo do prefeito, que parece muito sonolento para desarmá-la.

No meio desse cabo de guerra em que o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros (Setra), a PBH e a Câmara se encaram na beira do abismo e buscam ver quem pisca primeiro, o passageiro de ônibus já está no fundo do poço há muito tempo, clamando por socorro.

A população precisa se organizar. É preciso, por um lado, entender que o subsídio é necessário e que divide a conta do sistema com as camadas mais ricas, que não pegam ônibus. Por outro, não estamos aqui para financiar lucros abusivos de empresários que dia sim, dia também, desrespeitam o passageiro de ônibus. O subsídio tem que ser transparente, gerar eficiência e principalmente reforçar o controle público sobre o sistema.

Nisso, já saímos perdendo com uma prefeitura que não busca o controle do sistema de bilhetagem eletrônica, da operação dos recursos tarifários, que não pressiona pelo fim do contrato ou por soluções mais vantajosas. É preciso mais ação, menos leniência e menos chantagem com o tempo e a vida dos outros. Só com o fortalecimento dos instrumentos públicos de controle sobre o transporte é que começaremos a sair desse atoleiro.

André Veloso é economista, pesquisador de mobilidade urbana e integrante do Tarifa Zero BH.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

Edição: Larissa Costa