Minas Gerais

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Hidronegócio e o roubo das águas

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A população de Tejuco teve o direito de acesso básico à água privado - Foto: Ricardo Barbosa
A água, um bem de todos, vem sendo tratada como um negócio, servindo para enriquecer uns poucos

Sabe o que é hidronegócio? Como funciona? Pois conheça a história de duas localidades de Minas Gerais que exemplificam o roubo de águas que vem ameaçando nosso estado.

Tejuco é um pequeno distrito de Brumadinho com mais de 200 anos de história, onde moram cerca de 3 mil pessoas. A comunidade tinha um sistema de captação próprio e sempre utilizou nascentes do morro Três Irmãos e dos rios para beber, lavar roupa e irrigar suas plantações.

Há alguns anos, o Tejuco passou a ser cercado por mineradoras que produzem ruídos intensos e espalham nuvens de poeira dia e noite. Pior do que isso, a comunidade está ao lado da mina Córrego do Feijão, a mesma que rompeu em 2019 com o crime da Vale, que deixou mais de 150 mil pessoas em toda a bacia do Paraopeba sem água. O Tejuco é uma das comunidades que, embora não tenha sido atingida diretamente pela lama tóxica, teve seus mananciais de água destruídos pela mineração.

A Vale construiu uma estrada em cima do sistema dos moradores e jogou rejeitos no local, em 2020, inutilizando o sistema comunitário. Por que a Vale fez isso? A mineradora agiu para inutilizar o sistema de abastecimento da comunidade. A suspeita é que a Vale fez isso porque pretende minerar a área, que hoje é o reservatório comunitário.

Desigualdade absurda

Esse crime escancara uma situação absurdamente desigual: de um lado, as mineradoras têm acesso à água em volumes estratosféricos; de outro, populações como a do Tejuco têm seus mananciais destruídos e são privadas do direito básico de acesso à água.

Outra contradição gritante é que enquanto a população de Brumadinho e da bacia do Paraopeba não tem água, a cava da mina Córrego do Feijão teria a capacidade de bombear água para abastecer o equivalente a quatro municípios de Brumadinho. No entanto, agora que as mineradoras não precisam dessa água para produção, estão usando a cava para depositar os rejeitos do rompimento. Enquanto isso, a comunidade do Tejuco sobrevive com abastecimento de caminhão-pipa e água mineral engarrafada que recebe às quintas-feiras.

Nesse contexto, a comunidade se organizou e lutou, e os órgãos de Justiça determinaram que eles teriam direito ao saneamento básico e ao abastecimento de água. A mudança? A água que era in natura e gratuita para a comunidade, agora terá que ser paga. A Vale está construindo uma rede que será usada pela Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa). Na prática, a Copasa será beneficiada pelo sistema construído pela Vale e, depois, receberá dos moradores o pagamento pelo fornecimento de água.

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Enquanto a Copasa ganha, a comunidade atingida pela mineração perde sua soberania de acesso à água, o que interfere na alimentação e nos modos tradicionais de vida dessas pessoas. Ou seja, o roubo e a contaminação das águas pelas mineradoras gera um crime, e a solução dada é roubo de novo.

Outro território, situação parecida

A pequena vila de São Bartolomeu, distrito de Ouro Preto, também tem sua água roubada. Ali, cerca de 100 famílias viviam da produção de doce artesanal e turismo.

Agora, elas esbarram em imensas dificuldades para produzir, porque a água está impagável.

Ouro Preto sempre contou com rede municipal de distribuição de água, mas o poder público nunca construiu um sistema de saneamento efetivo. Chega, então, um prefeito que acha que a grande solução é entregar o sistema de saneamento e de abastecimento de água para uma empresa chinesa, a Saneouro.

Por sua vez, essa empresa entende que água vale mais que ouro e começa a cobrar altíssimas taxas pelo mesmo serviço que era oferecido pela prefeitura. As comunidades estão se organizando para denunciar o abuso: querem a Saneouro fora de Ouro Preto e que a água volte a ser do povo.

Água não deve ser mercadoria

Esses dois casos são exemplos atuais de como opera o chamado hidronegócio. No caso de Minas Gerais, grandes empresas não pagam pelo uso da água, seja na produção de minério, soja ou gado exportados, por exemplo.

A mineração é um caso escandaloso, porque destrói as áreas de carga e recarga de água e também os lençóis freáticos. Sem falar nos minerodutos, como o da empresa Anglo American, que transporta o minério de ferro extraído em Conceição do Mato Dentro até o Porto do Açu, em São João da Barra (RJ), e que, segundo o projeto, gasta cerca de 2,5 mil metros cúbicos de água por hora.

Enquanto isso, suas atividades estão secando os lençóis freáticos e gerando uma seca subterrânea, o que leva a situações de crise para pequenos agricultores e povos e comunidades tradicionais que são privados do acesso à água. Cada vez mais, as populações têm seus mananciais poluídos e são obrigadas a aderir a sistemas pagos de acesso à água.


 Foto: Bruno Kelly

E essa lógica perversa tem sido agravada a partir do novo Marco do Saneamento, que abre espaço para privatização irrestrita do serviço, prejudicando as comunidades que antes acessavam livremente a água para subsistência.

A água, um bem de todos, vem sendo tratada como um negócio, servindo para enriquecer uns poucos, à medida que ajuda a aprofundar as desigualdades e dificultar o acesso à vida.

Algo precisa ser feito e nosso mandato tem participado de audiências públicas, visitas técnicas e acompanhado os casos das comunidades de Ouro Preto e Brumadinho. Nossa defesa é pela revisão dos TACs para priorizar a recuperação de mananciais e nascentes. Estamos estudando medidas para que os atingidos não paguem pela água e seguimos lutando por zonas livres de mineração.

Temos que nos unir em defesa da soberania popular e da construção do Bem Viver.

 

 

Bella Gonçalves é mulher, lésbica, lutadora pelo direito à cidade e deputada estadual de Minas Gerais (PSOL).

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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

Edição: Larissa Costa