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Crônica | Vista cansada

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"O porteiro, sempre pontualíssimo, prestativo e educado, dando bom dia, boa tarde, dando recados e carregando algum embrulho. Um dia, o porteiro cometeu a descortesia de falecer." - Foto: Reprodução/ Freepik
Nossos olhos tornam a desigualdade perene

Otto Lara Resende, que escreveu uma belíssima crônica com esse título, foi meu conterrâneo. Peço licença ao famoso e talentoso conterrâneo para “roubar” o título dela.

Acho que Lara Resende e o grande Hemingway estavam certos: muita gente olha, olha e não vê. Incrível como o título continua vivo e contemporâneo.

Todos nós temos certo modo de olhar, é o que nos lembra brilhantemente sua crônica. Os escritores e poetas são assim, né? Prestam atenção em tudo e em todos, a toda hora. O diabo é que, de tanto ver, a gente não vê o óbvio do cotidiano.

As pessoas gostam das suas rotinas. Muita gente sai pela mesma porta todos os dias. Se alguma pessoa perguntar o que você viu, é bem capaz de não saber. De tanto ver, você não vê. E, assim, tocamos nossa vida por anos a fio. Temos uma certa seletividade de classe social, raça, estética e geográfica.

Gente que se acha importante demais, cheia de si mesma, não enxerga um palmo na frente do nariz. O umbigo é seu reino.

O exemplo dado na crônica é fantástico. Um profissional que passou, por longos 32 anos, pelo mesmo hall do prédio do seu escritório, só foi notar a falta do porteiro com o falecimento desse trabalhador. O porteiro, sempre pontualíssimo, prestativo e educado, dando bom dia, boa tarde, dando recados e carregando algum embrulho. Um dia, o porteiro cometeu a descortesia de falecer. O homem ficou bravo porque o porteiro não lhe abriu a garagem, nem carregou o peso do pacote mais uma vez.

Como ele era? Sua cara? Sua voz? Como se vestia?

Nem eu, nem você nem aquele homem sabia. O porteiro não era seu amigo do happy hour. Não frequentou os lugares grã-finos. Nem no dia do jogo do Galo, quando o porteiro descia a pé a Avenida Abrahão Caram para pegar o ônibus na Avenida Antônio Carlos para ir para sua quebrada, ele não o enxergou. Eles torciam pelo mesmo time. Só que um assistia ao jogo na velha geral. O outro, nas cadeiras numeradas.

Ah, meu grande escritor conterrâneo, o que nos salva são as crianças que denunciam que o rei está nu. Elas nos salvam. O olhar de uma criança nunca deixa de ver o que fingimos não enxergar mais. E a dor da vendedora de chicletes? Ela já acorda com o olhar cinza.

Nossos olhos se gastam no dia a dia, opacos. É por aí que a desigualdade fica perene.

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Edição: Elis Almeida