Rio Grande do Sul

DEMOCRATIZAÇÃO

Curso prepara artistas da periferia para elaborar projetos culturais

Setenta e seis participantes terminaram o seminário com um projeto pronto para acessar a Lei Paulo Gustavo

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O curso foi uma iniciativa do Comitê Popular Cultura e Luta, em parceria com a Escola de Gestão do Sima e o Instituto Federal Campus Alvorada (IFRS) - Foto: Isabel Borba

Defesa da cultura na periferia, fortalecimento do trabalho dos fazedores de arte, formação e capacitação para elaboração de projetos, resgate de saberes locais e vislumbre de perspectivas. Essas foram algumas das conquistas celebradas na formatura da primeira turma do curso de Agente Cultural Popular de Alvorada, realizada na quinta-feira (20), em evento realizado no Sindicato dos Municipários de Alvorada (Sima), no município da Região Metropolitana de Porto Alegre.
    
Com a casa cheia, o evento coroou o processo que ocorreu semanalmente, em duas turmas, de abril a junho de 2023, a partir da iniciativa do Comitê Popular Cultura e Luta, em parceria com a Escola de Gestão do Sima e o Instituto Federal Campus Alvorada (IFRS). Completaram o curso 76 artistas, homens e mulheres das mais variadas idades e expressões, grande parte oriunda da periferia de Alvorada, conhecida por ser uma “cidade dormitório”, com baixo desenvolvimento econômico e social.

Na pandemia, artistas ficaram sem renda

Apesar do objetivo de qualificar agentes culturais do município para terem acesso às leis de fomento à cultura, a experiência superou as expectativas para se transformar em um laboratório coletivo de amadurecimento entre artistas populares que, no setor da cultura, estão entre os que mais enfrentam dificuldades. É o que conta uma das coordenadoras do curso, a produtora cultural Josi Arruda.

“Acabou sendo uma oportunidade de levar um pouco de esperança também para as pessoas da periferia, autoestima e dignidade, sabe?” Ela repara que, além do mais, “eles aprenderam, tiveram acesso, alguém sentou com eles e falou de forma que eles entendessem como fazer um projeto, porque existe muitas ideias, mas eles não sabiam como colocar no papel”.  
    
Josi acentua que Alvorada é uma cidade “que tem o pior PIB do estado e a gente tem muitos fazedores de arte que, com a pandemia, ficaram totalmente sem renda, desempregados, ou foram trabalhar com Uber, segurança, faxina”.
    
Destaca ainda a importância do curso para aproximar os fazedores de arte que, muitas vezes, não se conheciam e realizavam seus projetos de forma isolada. “Isso é interessante. Alguns vão fazer trabalho coletivo e já estão se organizando para ver quem vai trabalhar no projeto do outro. Conseguiram fazer uma forma de auto-organização deles”, conta, revelando que cada participante encerrou o curso com um projeto pronto para acessar a Lei Paulo Gustavo.


Foram formados 76 artistas, homens e mulheres das mais variadas idades e expressões, grande parte oriunda da periferia de Alvorada / Foto: Isabel Borba

Artista celebra encontro e parcerias

O artista visual alvoradense Diovany Coutt, um dos formandos do curso, desenvolve um trabalho como professor voluntário no projeto Ubuntu Alvorada, uma escola agroecológica que ensina a plantar e conta também com aula de percussão, oficinas de arte e de cozinha. Seu trabalho, diz ele, “bebe muito na performance” porque está sempre na rua, promovendo atividades de limpeza e de conscientização”.

“A gente não tem teatro, não tem museu, não tem uma praça para que se possa fazer atividades dignas. Aí a gente foi ao encontro da Lei Aldir Blanc no ano retrasado. Quando ela chega, é o primeiro fomento histórico que teve em Alvorada desde sua existência”, comenta. “Isso fez com que a gente pudesse ter uma grande lupa, mostrando os artistas e a arte dentro da nossa cidade, e agora potencializa com a mudança de governo e mais a implementação das leis Paulo Gustavo e da Aldir Blanc II”, afirma.

“Lugar de escuta e revolta”

Ressalta ainda a maior visibilidade para a rede cultural. “No curso, eu fiz amizades. Não de forma efêmera, mas conheci artistas que falei ‘Nossa, podemos trabalhar juntos’. Hoje tem um colega, o Castor da Capoeira, que ele dá capoeira no projeto, e foi graças ao curso que a gente se conheceu. Hoje eu tenho um mano ali da praça que vende seus artesanatos, que toda vez que passo agora a gente se conversa, troca uma ideia”, exemplifica.
 
Coutt pontua o caráter de reflexão que o curso proporcionou. “Tem um lugar de escuta e de revolta, onde a gente teve discussões e situações sobre onde a cultura está. Onde se discutiu o que é cultura de verdade, quais são os pilares da nossa cultura e porque a cultura atravessa todas essas barreiras e todas essas pessoas.”


Obra de Diovani / Foto: Divulgação

“Construir espaços de formação”

O curso é uma iniciativa de esforço coletivo. Além de Josi Arruda, é coordenado pelo músico Dona Conceição. Ambos integram o Comitê Popular de Cultura e Luta, que se formou em 2020, dentro da ONG Terreiro de Onédes da Silva. O comitê conta com diversos artistas não só de Alvorada, mas de cidades como Porto Alegre, Gravataí e Cachoeirinha.

Quando veio a ideia de criar o curso e se percebeu o alto interesse, o comitê foi atrás de firmar a parceria com Escola de Gestão do Sindicato dos Municipários. “Eles nos emprestaram o espaço da sala de gestão e, mais que isso, foram muito parceiros e ficaram com a gente durante todo o curso”, explica Josi.


Primeira turma do curso de Agente Cultural Popular / Foto: Kethlyn Martinez

Ainda no rol dos braços dados, está o Instituto Federal. Com a parceria foi possível tornar a iniciativa um curso de extensão com certificação aos alunos. “E eles acompanharam todo o curso, ofereceram monitoria, sala de aula. Tudo isso gratuito, voluntário”, celebra.

A dirigente sindical e diretora geral da Escola de Gestão do Sima, Jacqueline Esteves, relata que a iniciativa foi muito bem acolhida pelo sindicato. Entre os objetivos da escola está o fortalecimento de espaços de empoderamento e participação social, cidadã e cultural dos moradores de Alvorada.

“Nossa Escola tem por objetivo possibilitar a construção de espaços de formação, qualificação e participação social de servidores públicos, trabalhadores informais, lideranças comunitárias e comunidades periféricas para a inserção sustentável no mundo do trabalho, participação social e construção da cidadania, de forma a contribuir para redução da desigualdade social”, afirma Teresinha, que é professora da rede municipal.


“Estamos abertos a ouvir, a acolher a comunidade sempre que possível e que é alinhada com aquilo que a gente acredita: uma educação pública, gratuita, de qualidade”, sublinha Adriana / Foto: Alice Mota

“Novo momento que a gente está vivendo na cultura”

A coordenadora de Extensão do IFRS Campus Alvorada, Adriana Martins, nota que a ideia de trabalhar com os fazedores de cultura do município para discutir a retomada das políticas públicas foi prontamente aceita. “Articulamos que a comunidade pudesse ocupar aqui o espaço, mas sem imaginar a quantidade de pessoas que viriam naquele momento, então, participar do encontro.”
   
Lembra que em março deste ano o comitê procurou o IFRS, quando foi elaborada em conjunto a proposta do curso de formação continuada, buscando inclusive bases de um curso de agente cultural já oferecido pelo Instituto em 2015, via Pronatec.

“O plano pedagógico foi elaborado com a participação do professor Jefferson Mello, que também é artista no município, o conhecido cantor Maninho Mello, cantor e compositor, e que também é professor formado pelo IPA na área da Música. Junto com ele Dona Conceição, também outro artista com formação e com experiência no exterior e com muitos cases de participação em editais. Uma galera assim muito boa de trabalho e que acredita muito nesse novo momento que a gente está vivendo aí na cultura”, assinala.

Também ressalta que o local do curso acabou sendo definido em área próxima ao centro da cidade, por uma questão de acesso. “Aqui a gente tem uma questão dentro de Alvorada que é a dificuldade de transporte público”, afirma. Josi Arruda também chamou a atenção para este fator, reparando que o transporte público local é precário e que este foi o motivo das aulas ocorrerem na Escola de Gestão, e não no campus do IFRS, que fica em uma comunidade.

“Estamos abertos a ouvir, a acolher a comunidade sempre que possível e que é alinhada com aquilo que a gente acredita: uma educação pública, gratuita, de qualidade”, sublinha Adriana. “Que é o desafio também de superar as desigualdades sociais, enfim, tudo que estiver alinhado com essa visão de mundo, de um mundo mais justo, igualitário, libertador, uma educação libertadora, crítica, a gente vai estar aqui como parceiro”, finaliza.


1ª Formatura de Silvia Regina / Foto: Josemar Afrovulto


Karen Nicoletti e seu filho Lucas Nocoletti / Foto: Josemar Afrovulto


Maia do Umbú, presidente de uma escola de samba do bairro mais pobre de Alvorada há 20 anos - 1° capacitação / Foto: Josemar Afrovulto


Mayte Rocha e sua família / Foto: Alicia Motta


Deise Peres, mulher negra moradora de uma comunidade de extrema vulnerabilidade / Foto: Josemar Afrovulto


Edição: Katia Marko