Rio Grande do Sul

DEMARCAÇÃO JÁ

Quilombo Kédi está em vigília pela proteção do território em área cobiçada pela especulação imobiliária

Nesta quinta-feira (14), às 19h30, lideranças do quilombo e pesquisadores da Ufrgs realizam um ato simbólico

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Localizado em uma das áreas mais nobres de Porto Alegre, a especulação imobiliária fez com que o território da comunidade fosse perdendo espaço - Foto: Fabiana Reinholz

Desde da última segunda-feira (11) a comunidade do Quilombo Kédi está organizada em vigília pela efetivação e respeito aos seus direitos enquanto quilombolas. A ação ocorre diante da instigação pela venda do território promovida por reuniões de cadastramento entre moradores interessados pela venda de seus terrenos e o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) com participação da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE-RS).

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Localizado em uma das áreas mais nobres de Porto Alegre, a especulação imobiliária fez com que o território da comunidade fosse perdendo espaço, encontrando-se atualmente esmagado entre prédios comerciais e residenciais, e o Country Club. Uma única rua dá acesso ao local. A comunidade está a poucos metros de dois grandes shoppings, Iguatemi e Bourbon. 

Desde 2014, por conta de uma decisão judicial, a comunidade autodeclarada, trava uma luta para se manter no local, já que há uma ordem de remoção dos remanescentes da área. 

Segundo a Frente Quilombola e lideranças do Quilombo Kédi, durante uma reunião no dia 14/08 os órgãos orientaram aos moradores a realização da abertura de contas bancárias para recebimento de indenizações pela desocupação da área. Os valores seriam advindos do Programa Mais Habitação - Compra Compartilhada da Prefeitura de Porto Alegre que concede auxílio financeiro para que pessoas deixem áreas de risco.

Em 2014, a prefeitura foi condenada pela Justiça, em ação movida pelo Ministério Público (MP) Estadual, a reassentar as cerca de 100 famílias para outro local. A ação foi julgada antes da Fundação Cultural Palmares certificar o território enquanto comunidade remanescente de quilombo, algo que aconteceu em fevereiro deste ano.

Com a possibilidade de indenização, e por não se considerarem quilombolas, não reconhecendo vínculo com o local, cerca de 70 pessoas procuraram a Defensoria Pública desde o início desse ano manifestando vontade de deixar o local mediante justa indenização.

“Impossibilitada de negar essa legítima pretensão, a DPE vem dando voz a essas pessoas e auxiliando na intermediação perante o município, sempre com o objetivo de ver assegurados todos os direitos e garantias dos moradores”, afirma Ana Carolina Sampaio Pinheiro de Castro Zacher, defensora pública coordenadora da Câmara de Conciliação.

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No entendimento da DPE a ação que já transitou em julgado na Justiça ainda é legítima e o processo de titulação do território ainda está em andamento permitindo a venda dos terrenos da comunidade. “Ao mesmo tempo, a instituição também trabalha pelo direito dos quilombolas, que têm vínculo com o território e querem ficar na Kédi, mantendo a ancestralidade. Para esses, a DPE tem buscado alternativas para melhorar as condições de vida no local, como saneamento e energia elétrica”, afirma Ana.

O Conselho Estadual de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra (Codene) solicitou à Fundação Cultural Palmares o cessamento de quaisquer efeitos da ação pública movida pelo MP/RS.

“Esse argumento de que o fato de não ter havido a Titulação autoriza moradores a fazer a ‘Venda’ não procede. A comunidade auto-identificada, certificada e com processo administrativo no Incra atrai para a esfera da autarquia a própria proteção durante o longo processo de demarcação e titulação deste território, então a venda e negociação tem uma série de restrições legais”, comenta o advogado Onir Araújo, que faz parte do conselho consultivo da Frente Quilombola.  

“A DPE está agindo extemporaneamente e induzindo vários moradores a erro. Tal atuação da DPE é de legalidade questionável e tem sido um fator de intranquilidade para os/as quilombolas. Essa atuação extemporânea da DPE tem por trás os interesses de Empreendimentos Imobiliários que impactam o Território em Associação com a Prefeitura de Porto Alegre”, afirma Onir. 

Nesta quinta-feira (14), às 19h30, lideranças do quilombo e pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) vão realizar um ato simbólico de entrega do Pleito de Demarcação Territorial Quilombola. O Pleito Territorial é peça muito importante para compor o Relatório Técnico de Identificação junto ao Instituto de Colonização e Reforma Agrária.

Entenda o processo de titulação de território quilombola

Obter o título de posse de suas terras é fundamental para a preservação da cultura e do modo de vida nas comunidades quilombolas. Para dar entrada no pedido de titulação, o primeiro passo é retirar na Fundação Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, uma certificação na qual a comunidade se autodefine como quilombola. De posse desse documento, o processo pode ser aberto no Incra.

A partir daí, seguem-se várias etapas. A primeira delas é a elaboração de um relatório técnico – o RTID – composto de estudo antropológico, levantamento fundiário, memorial descritivo e cadastramento das famílias quilombolas.

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Em seguida, abre-se a possibilidade de contestações ao RTID por eventuais interessados. Caso o Relatório seja aprovado, o Incra realiza a indenização dos ocupantes não quilombolas, para que deixem o território.

Os territórios quilombolas titulados não podem ser desmembrados, mantendo-se preservados para as futuras gerações. Tampouco podem ser vendidas e colocadas no mercado, sendo reservada exclusivamente para as comunidades.

A obtenção do título de posse da terra tem impacto decisivo nas comunidades quilombolas. Com a posse de suas terras, os quilombolas têm ainda mais facilidade de acesso a uma série de programas do governo federal, tais como o Programa Aquilomba Brasil, lançado por meio do Decreto nº 11.447/2023, que garante os direitos da população quilombola no país. O programa tem quatro eixos: acesso à terra e território; infraestrutura e qualidade de vida; inclusão produtiva e etnodesenvolvimento local; e direitos e cidadania.


Edição: Katia Marko