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Irmanados pela lama tóxica da Vale, atingidos de Brumadinho e Mariana se encontram

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Atingidos pelo crime da Vale em Brumadinho participaram de uma missa em Bento Rodrigues, que foi realizada nas ruínas do que restou da igreja da comunidade. - Foto: Léo Rodrigues/Agência Brasil
Até hoje, a Vale não pediu desculpas para ninguém e nem foi responsabilizada por ambos os crime

Nesta semana, completou-se oito anos do crime da Vale, Samarco e BHP Billton em Mariana. O crime aconteceu em 2015 e deixou 20 mortos, 1,2 mil famílias desalojadas e milhares de atingidos ao longo de toda a bacia do Rio Doce. Ao todo, 35 municípios do estado de Minas Gerais e Espírito Santo foram atingidos. Em janeiro de 2019, por sua vez, outro crime foi cometido pela Vale. Dessa vez, em Brumadinho, 272 pessoas foram assassinadas. Trabalhadores da mineradora eram a maioria das vítimas. Ao todo, 26 municípios foram atingidos.

Irmanados pela lama da mesma empresa reincidente, atingidos de Brumadinho e Mariana se encontraram no último dia 5 de novembro para homenagear os mortos e denunciar, mais uma vez, as recorrentes violações de direitos humanos e ambientais em razão dos desastres.

Como atingida, posso dizer que é muito difícil transcender a nossa dor individual e enxergar as similaridades das violações cometidas pelo setor da mineração. Isso ocorre porque num primeiro momento desejamos com todas as nossas forças que as nossas mortes e a nossa cidade seja especial. O problema é que não é assim que funciona.

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Rompimentos de barragem acontecem porque a lógica do modelo mineral do sistema capitalista fabrica desastres socioambientais. Para lucrar cada vez mais e se destacar no mercado mundial, as mineradoras multinacionais, como a Vale, optam sistematicamente pelo não investimento em segurança e monitoramento, pelo uso de metodologias e ferramentas mais baratas e inseguras, pela precarização e terceirização do trabalho, pela apresentação de documentos falsos que possibilitem a continuidade das operações ainda que em cenário de risco, entre outros. Ou seja, o setor constrói, aos poucos, a arquitetura dos crimes.

Ao encontrar essa realidade, fomos percebendo a necessidade de construir lutas e bandeiras cada vez mais abrangentes e coletivas, lutando pela reparação integral e justiça não só dos atingidos pelos crimes que já ocorreram, mas também pelos futuros crimes que já estão sendo desenhados.

Encontro em Bento Rodrigues

É nesse contexto que nós, atingidos pelo crime da Vale em Brumadinho, juntamos os nossos pedacinhos e saímos na madrugada, às 4h, para participar da missa em Bento Rodrigues, que foi realizada nas ruínas do que restou da igreja da comunidade. Organizamos um grupo de lideranças comunitárias de diferentes territórios do município, como Córrego do Feijão, Pires, Quilombo do Sapé, Marinhos e Ribeirão, Ponte das Almorreimas, Tejuco, Monte Cristo, Amianto, Canto do Rio e Centro de Brumadinho.

“Se a gente não consegue ver a dor do próximo, quer dizer que os doentes somos nós. Estar juntos com quem sofre faz de nós semelhantes na dor. Por isso estamos indo lá hoje, fazer presença nesse lugar, que foi um lugar de muita tristeza. Tenho certeza que ainda é, mas unindo as nossas dores, nós conseguimos vencer esse sofrimento”, disse Carmem Sandra, atingida do Córrego do Feijão.

No final da celebração tivemos a oportunidade de dar um abraço coletivo nos atingidos de Bento Rodrigues. Choramos juntos e desengasgamos, com a absoluta certeza de que somos parte de uma única luta. Com a absoluta certeza de que a vida vence a morte, a luz vence a treva e o amor vence o ódio.

“No momento que eles nos abraçaram foi uma sensação de força para nos unirmos juntos para lutar e não desistir”, relatou Cristiano José Sales, atingido de Bento Rodrigues.

“Para mim foi muito importante, foi um momento de muita emoção, que nos sensibilizou e também nos deu mais força para continuar a nossa luta, ou seja, só temos que agradecer a visita e pedir a Deus que continue abençoando a comunidade de Brumadinho, dando a eles muita força, pois nossa luta é muito desigual”, comentou Maria das Graças Quintão, também atingida de Bento Rodrigues.

“A vinda das pessoas de Brumadinho foi emocionante e ao mesmo tempo um alívio, pude naquele momento sentir o sofrimento deles de perto e passar o mesmo sentimento para eles”, comentou Simaria Quintão, atingida de Bento Rodrigues.

“Achei maravilhosa a acolhida aconchegante de todos. Fazer a refeição dentro da igreja enquanto ouvíamos as falas representou, para mim, a partilha dos pães e peixes com Jesus. Mesmo em meio a dor, se preocuparam em nos receber com toda hospitalidade. Foi lindo demais fazer parte daquela família e vizinhos naquele momento. Agradeço imensamente e espero poder retribuir na nossa comunidade”, apontou Maria dos Anjos, atingida da Rua Amianto.

A bem da verdade é que estávamos desesperados por esse abraço. As lideranças de Bento nos pediram desculpas porque os seus gritos não foram suficientes para impedir o rompimento da barragem em Brumadinho. Nós pedimos desculpas para eles porque não escutamos os gritos de Mariana como deveríamos ter escutado. Até hoje, a Vale e suas subsidiárias não pediram desculpas para ninguém e nem foram responsabilizadas por ambos os crimes.

"Vocês não precisam pedir desculpas para gente, mas a gente precisa pedir desculpas para vocês, porque nós não demos ouvidos aos seus gritos de socorro. Quando aconteceu o crime em Mariana, me lembro que vi na televisão. Chorei três dias, mas depois segui minha vida normal, mas eles [atingidos da bacia do Rio Doce] não. Eles continuaram sofrendo. Do mesmo jeito que isso aconteceu com vocês, está acontecendo com a gente hoje. Nós estamos aqui gritando por socorro para que as pessoas nos escutem, para que não aconteça em outro lugar. Ontem foram vocês, hoje somos nós. Vocês não estão sozinhos. Não aprendi com a dor de vocês, mas aprendi com a minha dor", disse Cláudia Saraiva, atingida de Ponte das Almorreimas.

Não vamos deixar nenhum direito para trás. Vamos lutar pela nossa reparação integral, pela justiça, pela memória dos nossos amigos e familiares, pela responsabilização criminal das empresas envolvidas e por garantias de não repetição do crime. Vamos com cuidado, respeitando o caminho, aprendendo uns com os outros e principalmente sabendo que não estamos só. Vamos realizar muitos encontros de trocas entre atingidos pela mineração de diferentes regiões de todo o Brasil. É isso que vamos fazer.

 

Marina Paula Oliveira é autora do livro “O preço de um crime socioambiental: os bastidores do processo de reparação do rompimento da barragem em Brumadinho”. Graduada, mestre e doutoranda em Relações Internacionais pela PUC-Minas. É atingida pelo rompimento da barragem de Brumadinho, militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e do Movimento Brasil Popular (MBP).

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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Larissa Costa