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Resenha | Paisagens do Tempo: uma leitura de Estesia, de Cida Pedrosa

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Capa do livro Estesia, de Cida Pedrosa - Foto: Divulgação
Cida Pedrosa propõe um outro olhar sobre a paisagem e o tempo

Templo da modernidade, espaço das multidões, espanto, dores, amores... As visões literárias das cidades modernas – de Baudelaire a João do Rio e destes à produção contemporânea -  estão quase sempre a evocar o ir e vir dos anônimos transeuntes pelas ruas e vielas. E a evocar o fugidio do tempo e das pessoas, impossibilitando até mesmo as relações duradouras.

Dizia o poeta francês em um de seus mais conhecidos sonetos: “A rua, em torno, era ensurdecedora vaia. / Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa, / Uma mulher passou, com sua mão vaidosa / Erguendo e balançando a barra alva da saia; / (...) Longe daqui! tarde demais! nunca talvez! / Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste, / Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!” (Baudelaire, Uma passante)

Registrado ou produzido como experiência de êxtase e temor, o perambular pela cidade está no coração da literatura e das artes modernas. Andar, caminhar... perder-se, diria Walter Benjamim. A cidade leva e traz, junta e separa, corta e sutura, repondo o movimento do viver-se e do morrer-se.

Morrer-se! No meio da história houve uma pandemia. As caminhadas cessaram, as ruas se esvaziaram, o humano recolheu-se em sua potência e em sua presença destrutiva sobre o planeta. Foi hora de rever o mundo, rever-se no mundo. E é dessa experiência que nos conta, poeticamente, Cida Pedrosa em seu livro Estesia.

“Mas a vida vai e vem em seu carrossel de desavisos, e a covid-19, com sua lufada de morte, de aprisionamentos e de retorno a velhas formas de existir, pôs-me noutra rota, e eu, igual a todas as pessoas, tive que reinventar meu dia a dia. Comecei a sonhar lavando louças, a cuidar melhor das minhas plantinhas, a enxergar a flor que caiu no copo d’água, esquecido no chão da varanda”, escreveu a poeta no texto de abertura do livro.

A escritora pernambucana foi agraciada, em 2020,  com o prêmio Jabuti (livro do ano e poesia) por Solo para Vialejo, e também indicada para o Jabuti em 2023 com o livro  Araras Vermelhas.

Agora, apresenta neste  pequeno volume  40 fotografias acompanhadas por outros 40 pequenos poemas (ou vice-versa) em que, com estesia, quer dizer, com sensibilidade,  “relata” seus passeios pelos bairros do Recife, circunvizinhos à sua casa, em companhia do seu cachorro Bob Marley durante os primeiros meses da pandemia (apesar de o  livro ter sido lançado em 2022, o texto de abertura é datado de 1º de agosto de 2020).

É claro que, no livro, o ato fotográfico e de inscrição do mesmo no livro, acompanhado da escrita – registros fotográficos e poéticos, segundo a autora - não é apenas um “relato”. É a construção de uma forma de olhar a cidade, no justo momento em que esta muito pouco se parece com aquilo que costumamos entender por esta configuração social, cultural, politica, estética.

Não se trata de fotografias encenadas. São instantâneos de paisagens prefiguradas pelo tempo e pelo espaço percorrido. Nelas, cenário e cena se confundem no espetáculo da natureza, no espaço nada natural da cidade.

As caminhadas foram experiências de retorno à posição contemplativa perdida pela autora em seu trânsito para a cidade. “Vim de um lugar onde a contemplação faz parte do cotidiano e o olhar está sempre pronto para o espanto, para a beleza, para a tristeza, para a vida e para a morte...”, escreve a autora.

Não por acaso, claro, a experiência da morte se impõe, funda, candente. E são várias as figurações da morte presentes no livro. “Há morte corrente / Na ferrugem que assombra. / Pranto a cadeado”, registrava Cida Pedrosa ao lado de uma fotografia de um cadeado prendendo uma corrente enferrujada. Sintomaticamente, a marca do cadeado é Brazil.

Morre-se, parece nos dizer a poeta fazendo eco às elaborações de M. Blanchot. A deterioração da matéria, dos objetos e das relações humanas está amplamente documentada nas imagens e nos textos.

As flores murcham, as correntes enferrujam, as casas se desmancham. A vida esvai-se.  Aliás, essas imagens dialogam amplamente com as cenas mais marcantes, a meu ver, do filme Retratos fantasmas, lançado recentemente pelo também pernambucano Kleber Mendonça Filho.

“Um nado vermelho, / O suicídio de pétalas. Invasão do nada”, escreve sobre uma imagem em que, numa xícara d’água boia uma flor.

“Um corpo que cai / Sem velório e sem pranto. Aflita mensagem”, pontua sobre a imagem de um galho de árvore caído no chão da rua, parecendo ter sido retirada da árvore por uma grande força.

“A mãe se esvai... / Estilhaços de memória, / Um corte profundo”, registra Cida Pedrosa ao lado de uma imagem de um copo quebrado.

“Deus espia ao longe / Uma perversão moderna. / O amor ofusca”, descreve dizendo de uma imagem de pessoas dormindo na rua e de um pequeno cartaz com os dizeres “Estou com fome”.

Doutra sorte, a gente poderia aproximar-se do conjunto da obra como discursos sobre a transformação. Morre-se, mas também, vive-se.  Há, aqui, me parece, o registro de uma temporalidade que, mais em trânsito, não mais é prefigurada pelo relógio, objeto tão comum na experiência urbana.

É ela quem diz, ao lado de uma imagem de um ponto de ônibus vazio: “o tempo sentado / Sem o rugido das horas. / O azul se desfaz”.

Liberto do relógio, o tempo se refaz, se des-faz e se reconfigura. É o tempo da pedra, das “altivas” palmeiras ou das “formigas anônimas: construindo seus ninhos. a

No templo de pedra e do asfalto, uma outra experiência do tempo (e da vida) se impõe.

“Num flash de luz / explode a flor no concreto. / Prisão dos desejos”, afirma sobre a imagem de uma flor em primeiro plano e os dizeres “toda forma de amor é válida”, ao fundo.

“Em caule de flor, / Quebra a dormência a semente. / Instante de pedra” acompanha uma imagem de uma semente que “desabrocha” em meio às pedras.

O livro de Cida Pedrosa nos propõe um outro olhar sobre a paisagem e sobre o tempo.  Não se trata apenas de um outro modo de “ver” a paisagem e de sentir a “passagem” do tempo. É uma outra “estesia” emergida, neste instante, na radical experiência da covid-19, essa “lufada de morte” que nos enlaçou a todos. Mas que evoca as  mais ancestrais histórias e  memórias do humano e de sua convivência com os outros seres que habitam e protegem o planeta.

Assim, se no livro são evocados, direta ou indiretamente Duchamp e Hitchcock (“um corpo que cai”), há também a presença de evocações às ancestralidades presentes na obra e à palavra de Airton Krenak, Davi Kopenawa e dos sertões do Araripe pernambucano, berço da autora.

Evoé a todas essas pessoas e ancestralidade, e à Cida Pedrosa por delas nos lembrar.


Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo e doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

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Leia outros artigos de Luciano Mendes de Faria Filho na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida