Minas Gerais

Coluna

As artes e o nosso tempo

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Foto do livro Vozes do Fundo do Poço - Foto: Acervo pessoal
Uma das qualidades do livro é que trata das angústias humanas

No último dia 30, aproveitando e participando das comemorações do Dia Nacional do Samba, celebrado dia 2 de dezembro, Diogo Nogueira, filho do grande João Nogueira, lançou um novo samba: “A boa do samba”, composição de Junior Dom, Daniel Oliveira e Alexandre Chacrinha e arranjos de Rafael dos Santos. O refrão sintetiza um sentimento de muitas pessoas, sobretudo neste último ano:

“O meu terreiro iluminado e ungido

Cercado de amigos

Num clima legal deixa de lado

O rancor e perdoa

Um sorriso no rosto

É fundamental pra viver

Numa boa. ”

E, mais à frente canta também:

“Coisa boa

Criança estudando pra valer

Coisa boa

Fazer o meu Brasil crescer

Coisa boa

O bem-estar da nação

Coisa boa

Meu samba tocando no seu coração.”

É claro que é sempre bom acalentar estes bons desejos, mas é preciso lembrar também que não se perdoa quem não quer ser perdoado. E que nem tudo é rancor. Neste sentido, é tentador, aqui, colocar este samba em diálogo com outro, também lançado recentemente por Chico Buarque, “Que tal um samba? ”, que assunta:

“Depois de tanta mutreta
Depois de tanta cascata
Depois de tanta derrota
Depois de tanta demência

E uma dor filha da puta, que tal?
Puxar um samba
Que tal um samba?
Um samba.”

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Chico Buarque, assim como Diogo Nogueira e os compositores que lhe emprestaram a letra, sabem das nítidas conotações políticas de sua produção artística e intelectual. Tanto assim que, em Tempo e Artista, Chico escreveu: “Já vestindo a pele do artista/ O tempo arrebata-lhe a garganta/ O velho cantor, subindo ao palco/ Apenas abre a voz, e o tempo canta”.

A ideia de que o artista “abre a voz, e o tempo canta”, contribui para comentar o novo livro do Chico Lopes, “Vozes do fundo do poço” (Lavra Editora, 2023). Ao lê-lo tive a nítida sensação de que o (nosso) tempo se inscreve nitidamente na escrita poética deste já consagrado escritor paulista radicado há muitos anos em Poços de Caldas, Minas Gerais. E o melhor é que, essa inscrição se faz artisticamente refinada, de forma quase nunca explícita, mas contundente e consciente.

Num certo sentido, “Vozes do fundo do poço” dá continuidade, ou reverbera, às intervenções do autor em outros domínios de sua produção artística e nas redes sociais.

Sem jamais ser niilista, há um realismo em sua produção que rompe completamente com qualquer otimismo piegas ou romântico, ainda que seja possível inscrever alguns poemas do livro na tradição romântica, no sentido forte do termo, em que o desassossego, as angústias e as impotências do sujeito no e com o mundo são conscientes e explicitadas por um eu lírico que se desdobra para dizer das muitas misérias do mundo.

“Noite adentro, claramente não ouvimos/ os mortos seus suspiros, / seu chacoalhar de ossos. / (...) / Noite adentro os torturados / não viram suspensas as torturas / e rogam por uma trégua / que os dispense, aflitos, / de emitir novos gritos”.

Não é detalhe o fato do livro estar dividido em duas partes – Danças das sombras e Pequenas luzes -, ainda que as luzes por vezes parecem tão opacas que poucos, ou nada, conseguem romper com as sombras que invadem mundo. Não por acaso, me parece, o poema em que as luzes mais se fazem presente é “`Para Elisa”, um belo poema dedicado à filha.

Angústias, desfaçatez dos que se curvam aos donos do poder, desertos, cidades que não acolhem, violências mil... nosso tempo pode ser lido na transfiguração poética de Chico Lopes de uma forma lancinante, sem clemência. “E, como, então, dormir?”, interroga-nos o verso final do poema Mãe, sintetizando, numa pergunta, um sentimento que atravessa de fora a fora a leitura.

Uma das qualidades do livro do Chico Lopes é que, estando encharcado de nosso tempo (para lembrar o poema Sob a chuva), trata das angústias humanas em tempos e espaços muito distintos. No transcurso da leitura fui percebendo (em mim? no texto?) ecos de outros textos.

Dança das sombras, dos mais longos poemas do livro, me lembrou o Orgia dos duendes, de Bernardo Guimarães, mas também O corvo, de Edgar Allan Poe, talvez pelo tom orgiástico e lúgubre que exala do poema. Ou como não se lembrar, pensei, de A paixão segundo G.H, de Clarice Lispector, quando, “ao fim da telenovela/  a mãe esquarteja os filhos / cujo choro atrapalhava / a revelação do segredo / da carta de madame H”?

Walter Benjamim, filósofo alemão escreveu que os historiadores precisam estar atentos para o fato de que “nem os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer”. Mas, certamente, essa não é uma advertência dirigida apenas aos historiadores e sim a todos aquelas e aquelas que não se acomodam às misérias do mundo.

Nestes e em outros tempos, artistas dos mais variados quadrantes e ofícios têm dado sua contribuição contra o esquecimento. Penso que esta é, também, uma outra maneira de ler ou de se referir ao belo livro Vozes do fundo do poço, de Chico Lopes.

 

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo e doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

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Leia outros artigos de Luciano Mendes de Faria Filho na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida