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Estado laico, calendário religioso: a propósito do aniversário de Belo Horizonte

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Nesta terça (12), Belo Horizonte completa 125 anos - Foto: Divulgação PBH
Calendário é um modo de organizar, instituir e perenizar memórias

Na última sexta-feira, dia 8 de dezembro, foi feriado em Belo Horizonte, assim como em várias outras cidades do pais, como em Recife, cidade de onde escrevo neste momento. Trata-se da celebração religiosa católica do dia de Nossa Senhora da Conceição. No entanto, dia 12 de dezembro, é aniversário da cidade e a cidade não manda guardar, ou celebrar, este dia como feriado.

Sabemos que o calendário é um dos principais lugares de memória de uma sociedade. Quando se manda celebrar um dia como feriado é porque entende-se que aquele dia é importante para aquela comunidade. Por isso, não é sem razão o questionamento sobre os modos como certos grupos religiosos se apropriaram do calendário civil, numa República supostamente laica, em seu próprio benefício.

A favor das classes dirigentes de Belo Horizonte, aquelas que determinaram e determinam o calendário, pode-se argumentar que este é um fato muito comum no país. O nosso calendário civil é marcadamente religioso. Como pensar, por exemplo, numa República ou numa escola laica quando o calendário que rege os seus funcionamentos é religioso?

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No caso de Belo Horizonte, é claro que se pode argumentar, também, que a data de 12 de dezembro, referente a 12 de dezembro de 1897, supostamente dia de inauguração da cidade, é parte da tentativa de produzir uma memória e inventar uma tradição. O que, aparentemente, não deu muito certo, visto que nem o calendário nem os poderes públicos demarcam fortemente esta data.

No entanto, não convém esquecer que antes, muito antes, de 1897 já o território que hoje é ocupado pela cidade de Belo Horizonte já era ocupado. E a tentativa de apagar a história do Curral d’El Rei e de outras povoações da memória e da história é parte do investimento republicano mineiro de ruptura com o passado.

Outro fato interessante, a respeito do feriado do dia 8 de dezembro é que muita gente o confunde com o aniversário da cidade ou mesmo com o dia da “padroeira da cidade”. Eis, por exemplo, o que a página do SIPROCFC MG informava no dia 6 de dezembro de 2023:

“Belo Horizonte celebra na próxima sexta-feira, dia 08/12/23, o feriado municipal que homenageia Imaculada Conceição, a padroeira da cidade. Assim, o Siprocfc-MG e a Coordenadoria Estadual de Gestão de Trânsito (CET/MG), o Trânsito MG, antigo Detran-MG, informam que estarão fechados no dia. As atividades serão retomadas normalmente na segunda-feira (11/12/23)”.

Dia da padroeira

Mas, não nos esqueçamos, o dia da padroeira da cidade, Nossa Senhora da Boa Viagem, é celebrado, aí sim, com feriado e tudo o mais, no dia 15 de agosto. Então é isso, a cidade de Belo Horizonte manda guardar feriados religiosos católicos mas não manda guardar o dia de seu aniversário.

As confusões acima expostas reforçam o argumento sobre como a memória religiosa se impõe sobre a memória cívica laica. Que significado político pode ter isso?

Como já se disse, calendário é um modo de organizar, instituir e perenizar memórias e, logo, também os esquecimentos. Ao escolher as memórias religiosas para estabelecer como datas comemorativas e educativas as datas de uma religião específica, as autoridades civis do município estão quebrando a espinha dorsal de uma possível República laica (e não nos esqueçamos que, pela Constituição, os Municípios são, assim como os Estados, entes federados).

Ao mesmo tempo, mandando esquecer as memórias outras, seculares, laicas, que deveriam constituir o cerne da educação cívica da cidadania republicana.

Conquista da modernidade

Uma das conquistas da modernidade foi, justamente, a distinção entre o tempo o religioso e o tempo laico, cada um com seus próprios calendários, ainda que possa haver aproximação entre estes.

Mandar guardar e celebrar o calendário cívico e laico é um modo de educação para o exercício de uma cidadania que considera a agência das pessoas na construção da história e, logo, de nossas cidades. É também um modo de respeitar todas as formas de experiências e crenças religiosas, sem privilegiar nenhuma delas.

A naturalização da demarcação religiosa do calendário civil e o esquecimento disso pelas pessoas, inclusive aquelas para quem este fato deveria ser um problema, mostra que estamos muito longe de construir uma República e uma cidade laica e respeitosa com todas as pessoas e com todas as histórias que nela habitam.

 

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo e doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida