Rio Grande do Sul

ARTIGO

Não posso esquecer daqueles anos

'Nosso apartamento passou a ser constantemente vigiado por agentes da ditadura', lembra o jornalista Walmaro Paz

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Tanques em meio a populares próximo a Avenida Getúlio Vargas no dia 2 de abril de 1964 - Arquivo Nacional/Correio da Manhã

Vivi o golpe. Estava com 16 anos dia 1º de abril de 1964. Cursava o Clássico no Colégio Rosário e era membro do Grêmio Estudantil Rosariense (GER) e da direção da União Gaúcha de Estudantes Secundários (UGES). Recebi a notícia nas bancas de jornais quando ia para a aula. É difícil esquecer. O golpe só chegou aqui quando o Meneghetti, que era o governador, retornou a Porto Alegre de Passo Fundo para onde havia fugido.

:: Entenda como foi a participação dos EUA no golpe de 64 (e o que ainda pode ser revelado) ::

O Rio Grande do Sul tentava resistir. Uma semana depois começaram as prisões nas entidades. Muitos companheiros foram presos, eu não fui porque tinha somente 16 anos. Quando estava com 18 anos fui passar a noite no DOPS porque estava com um livro da Rosa Luxemburgo. Fui fotografado de frente e perfil e toquei piano na tinta preta, uma almofada de carimbo. Só não fiquei mais porque estava entrando no CPOR, de onde fui expulso dias depois por "excesso de contingente".

Logo entrei na luta direta trabalhando no esquema de segurança do DCE da Ufrgs. Logo depois DCE Livre. Foi quando conheci minha companheira, a Vera que era presidente do Centro Acadêmico da Enfermagem. Nossa vida tornou-se num inferno. Casamos ainda em 1967, nosso apartamento passou a ser constantemente vigiado por agentes que ficavam parados em frente a pracinha Júlio Bozano. Quando um de nós saia lá ia atrás aquele sabujo cheio de brilhantina no cabelo e de casaco de couro preto.

:: 60 anos do golpe: confira calendário de eventos de entidades do RS sobre a ditadura militar ::

Cada vez que ocorria uma manifestação do movimento estudantil eles passavam no outro dia, de manhã bem cedo, e me levavam para explicar o que estava fazendo naquela ocasião. Isto aconteceu até 1969. Neste final de ano nos mudamos para São Borja, onde fui trabalhar com meu pai e tranquei a faculdade. Por pouco escapei da Operação Bandeirantes, no início dos anos 1970.

Retornamos a Porto Alegre em 1972 e em 1973 terminei minha faculdade e fui trabalhar em jornais. Primeiro na Folha da Manhã, em seguida na Zero Hora, onde só fiquei três meses. Na metade da década fui trabalhar na sucursal de O Globo, onde permaneci mais tempo. Antes disso, por volta de 1974 fui proibido de dar aulas num colégio particular no interior do estado. O interventor (na época prefeito era interventor) me conhecia e proibiu as irmãs de me contratarem, ele tinha sido meu colega no Rosário e conhecia meu pensamento político.

:: Golpe de 1964 destruiu projeto de país e não pode ser esquecido, diz João Vicente Goulart ::

Vera trabalhava de enfermeira e praticamente sustentava nossa família, nessa altura com três filhas. A ditadura não foi fácil. É impossível se esquecer daqueles tempos. O medo dominava nossas vidas. Assim como a da maior parte da juventude. Tivemos colegas que ganharam dinheiro do aparelho de repressão entregando nossos passos à polícia. Mas desses prefiro não falar, nem me lembrar.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


Edição: Katia Marko