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Ditadura, patrimonialismo e administração pública: causas estruturais do golpe persistem

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Imagem ilustrativa - Foto: Wikimedia Commons
Serviço público de qualidade é fundamental para a democracia

Há várias razões para lembrar, ou “descomemorar”, o golpe empresarial-militar de 1964 que jogou o Brasil em 21 anos de ditadura. Golpes de Estado têm causas conjunturais, de curto prazo, e causas estruturais, de longo prazo.

Algumas das causas estruturais que possibilitaram o golpe de 1964 ainda persistem. É preciso conhecê-las para combatê-las, pois elas significam autoritarismo, desigualdade e exclusão.

Os elementos escravista e colonial de nossa formação e a estrutura de poder patrimonialista estão entre essas causas estruturais. A escravidão deixou uma sociedade marcada pela violência e pela naturalização da desigualdade entre as pessoas. O colonialismo gerou uma sociedade de invasão e conquista, e de expansão de suas fronteiras internas, numa espécie de conflito difuso e não declarado, porém permanente, em que os dominadores e os setores armados enxergam o povo sob uma “lógica do inimigo interno”1.
 

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Em termos políticos, o escravismo e o colonialismo, conectados em reforço mútuo, ligaram-se a um Estado patrimonialista, em que o poder público, mal distinto da vida privada, foi capturado pelas elites como veículo de seus interesses particulares, não do bem comum.

Golpe de 1964 reforçou desigualdades

O golpe de 1964 e a ditadura que lhe seguiu reforçaram essas estruturas. A bem financiada máquina de desinformação da extrema direita martela, dia e noite, mentiras a respeito da ditadura militar: que não havia criminalidade expressiva nem corrupção naquele tempo, por exemplo. Outra informação equivocada é que o regime militar expandiu e aperfeiçoou a burocracia pública. Não foi bem assim.

O regime militar tinha a segurança nacional e o desenvolvimento econômico como metas. A doutrina de segurança nacional reforçou e deu novo sentido à mencionada lógica do inimigo interno.

Vigorava, para o povo, e especialmente para alguns grupos como estudantes, artistas, intelectuais, moradores de favelas, algo como uma “presunção de culpa” – todos eram suspeitos, até prova em contrário, de serem “subversivos”, “baderneiros” etc. Criou-se o que Lilian Schwarz e Heloísa Starling chamaram de “burocracia da violência”, um setor, incrustado dentro do aparato militar e policial, voltado para a espionagem e repressão de “elementos perigosos” da sociedade2.

Já o objetivo do desenvolvimento econômico foi perseguido por meio de uma aliança entre a alta burocracia, composta por tecnocratas e militares, e o grande capital nacional e internacional3. Para viabilizar o desenvolvimentismo econômico patrocinado pelo Estado houve, realmente, uma expansão do serviço público. Desde antes do regime militar, alguns órgãos e empresas públicas, como o Itamaraty, a Petrobrás, o Banco do Brasil, dentre outros, já eram nichos de eficiência em um setor público basicamente mal estruturado e mal gerido.

Depois de 1964, a orientação técnica dessas ilhas de competência, que dispunham de uma burocracia profissional, estável e razoavelmente remunerada, foi mantida e reforçada, especialmente quando se tratava de setores, órgãos e empresas de interesse estratégico para a acumulação de capital e a visão de segurança nacional dos militares. Mas a situação geral dos serviços e dos servidores públicos era outra, bem pior.

O concurso público, por exemplo, era exceção. Predominavam, particularmente nos municípios, mas mesmo em nível estadual e federal, as contratações precárias, muitas vezes temporárias, e pior: o apadrinhamento pessoal e político e o loteamento de cargos.

A qualificação dos servidores públicos, em geral, era precária. No fim do regime militar, 81% deles não possuíam curso superior e 32% não haviam completado o ensino fundamental, e esses servidores de formação precária concentravam-se na prestação de serviços sociais fundamentais para a população carente, como a educação.

A fiscalização, a transparência, a prestação de contas à sociedade do uso de recursos que vêm predominantemente dos tributos pagos pelos cidadãos, eram quase nulas. Mecanismos internos de auditoria, controle, denúncia, correição, havia pouco ou nada. Sindicatos proibidos ou de mãos atadas.

Mídia submetida à censura, reportar algum desvio na administração pública era “subversão”, ainda mais se fossem órgãos ou empresas geridos por militares, cuja presença na administração pública, em funções para as quais raramente estavam preparados, explodiu. Só no fim do regime militar a imprensa passou a denunciar casos de ineficiência e corrupção no setor público.

Pobres: atraídos e excluídos

Ineficiência e corrupção que são marcas do patrimonialismo, claramente reforçado pela ditadura militar que tantos ganhos trouxe para as elites brasileiras.

Em 1985, após 21 anos de regime de exceção, o país estava mais desenvolvido, industrializado e urbanizado, mas, sobretudo, as elites estavam imensamente mais ricas e poderosas, aprofundara-se o fosso entre elas e o restante da população. Em termos puramente materiais, esse restante ganhou algo, sim, embora não muito.

Os mais pobres foram submetidos a um sistema perverso de atração e exclusão. Sistema que atrai para o consumo, mas é impossível que todos consigam consumir. Atrai para as esperanças de realização e superação individual mas joga a maioria na solidão, anomia e desesperança. Atrai para a cidade, concentra demograficamente, mas manda os pobres para a periferia carente de serviços. Atrai para o trabalho, mas relega boa parte das pessoas ao trabalho informal e precário ou a promessas de autonomia que não se cumprem.

Além disso, o patrimonialismo exacerbado na ditadura legou uma economia viciada na troca de favores no âmbito do Estado e na exploração de trabalho barato. Em vez de aumentar a competitividade e produtividade, essa economia se viabiliza explorando mão de obra de maneira agressiva e degradando o meio ambiente.

Somente o aprofundamento da democracia, e da liberdade por meio da igualdade, resolvem essa situação. E não há como aprofundar a democracia e combater a herança patrimonialista sem uma burocracia pública de qualidade, profissional, com servidores concursados, estáveis, dignamente remunerados e responsivos ao povo e ao interesse público.

As bases para esse serviço público republicano foram dadas pela redemocratização e pela Constituição de 1988, não pela ditadura instalada em 1964. As propostas de reforma administrativa ventiladas no governo passado atacam essas bases, representam a luta de boa parte das elites pela instrumentalização, para si, do Estado, pela manutenção, sob nova capa, do velho patrimonialismo.

Um serviço público de qualidade, republicano, não é objetivo somente de servidores públicos, mas da democracia brasileira.


Rubens Goyatá Campante é servidor do TRT-3ª Região, doutor em Sociologia pela UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (CERBRAS)

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Este é um artigo de opinião, a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

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Edição: Elis Almeida