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Deus não está morto! E a escola com isso?

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Capa do livro o avesso da pele, de Jeferson Tenório. - DIvulgação
A escola pública tem um papel basilar no combate ao retrocesso

Nas últimas semanas, ganharam repercussão os debates envolvendo a obra O avesso da pele, de Jeferson Tenório. O livro, vencedor do Prêmio Jabuti, o mais concorrido e prestigiado no meio literário brasileiro, discute diversos elementos da sociedade, incluindo o racismo, a partir da história de um garoto negro que tem o pai, professor de escola pública, assassinado pela polícia. 

A centelha foi o posicionamento de uma diretora escolar do estado do Rio Grande do Sul, que realizou a maior parte de sua formação básica em uma instituição confessional e apresenta um perfil conservador, contestando a disponibilização do livro às escolas, o que desencadeou uma série de reações. 

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De acordo com o próprio autor, essa não foi a primeira vez que atacam a produção. Os ataques fazem parte de uma linha de ação de perseguição a livros, reforçada pelo crescimento político da extrema-direita nos últimos anos. Mas dessa vez, a repercussão foi maior. O livro foi censurado nas redes escolares de alguns estados, mas, por outro lado, teve um aumento de 1400% nas vendas em uma plataforma multinacional de comércio, de acordo com o site da Carta Capital.

Nietzsche e o Deus morto

Eventos como este, que fazem lembrar a inquisição medieval, mas não só, indicam que a famosa e mal compreendida afirmação “Deus está morto”, do filósofo Friedrich Nietzsche no livro Gaia Ciência, precisa ser rediscutida. Explico. 

Nietzsche, de forma brilhante, foi um dos pensadores que melhor compreendeu e criticou a modernidade. A intenção de Nietzsche com essa colocação não era de propagandear ataques gratuitos às religiões e seus crentes, com destaque para o cristianismo. Na realidade, o filósofo tece uma análise criativa, poética, sagaz, em relação à forma como a presença constante de Deus deu lugar ao conhecimento científico na modernidade ocidental. 

Portanto, Deus está morto, no sentido de que não temos mais os preceitos religiosos, as formulações teológicas e a experiência e a certeza da fé como antes, no nível e na centralidade de outras épocas. 

Estudando obras de Nietzsche como Genealogia da moral, Assim falava Zaratrusta, Humano demasiado humano, O Anticristo, Além do bem e do mal, entre outras, além de acompanhar a divulgação de comentadores como Viviane Mosé e Scarlett Marton, a partir dos quais aprendo muito, tive a convicção, por anos, de que o pensador estava completamente correto quanto à morte de Deus. Inclusive, achava que a série de filmes patrocinada por religiosos Deus não está morto, lançada em 2014, era de uma inocência e tolice sem tamanho. Contudo, tratava-se de um alerta verossímil.

Diante da realidade dos últimos anos, preciso revisar minha filiação incondicional à análise nietzschiana quanto a este ponto. O crescente fanatismo religioso cristão, o aumento do conservadorismo sobre os mais diversos aspectos,  o avanço da extrema direita na política e, sobretudo, o negacionismo científico, exigem encarar o fato de que Deus continua vivo. Isto é, a modernidade e sua cientificidade, suas tecnologias, suas promessas de emancipação, não produziram transformações profundas capazes de superar o obscurantismo. E se Nietzsche via em sua época a ciência arrogante se apresentar como uma nova divindade, ocupando o lugar da religião, hoje temos que encarar o fato de que o medievalismo retrógrado não se dissipou.

E a escola diante disso? 

A escola pública, espaço em que acontece a educação de verdade, tem um papel basilar no combate ao retrocesso. A escola precisa contrapor pensamentos e atitudes promotoras de sectarização, adoecimento e brutalidade. Assim, precisa superar a continuidade das trevas divinas. Isso não significa, evidentemente, insultar crianças e jovens que incorporam e reproduzem crenças familiares de cunho religioso, até porque, se amam suas famílias, poderiam passar a odiar os estudos. Seria um resultado terrível. 

Porém, a escola tem sim que ser um lugar de questionamentos, não se limitando ao que a família e as igrejas dizem acreditar, até porque, se assim fosse, teríamos que repensar a necessidade de existência das instituições educativas. 

A escola é um espaço privilegiado para o compartilhamento e produção cultural. Logo, humana por excelência. E os ultraconservadores sabem desse potencial, por isso, atacam a educação, ofendem os professores, dizem mentiras sobre o conhecimento racional e sistematizado. No mesmo sentido, estúpidos de variados tipos buscam assumir postos de liderança quanto à educação pública brasileira.

A Terra é redonda e diferente do que afirmam os obscurantistas, na escola deve existir a liberdade de falar de tudo, inclusive de racismo e outras formas de opressão. Artes, técnicas, ética, história, linguagens e ciências devem ser centrais no processo educativo, Deus não. 

Portanto, é preciso contrapor, sem se iludir com qualquer outra novidade ou estrutura que queira ocupar o lugar majestoso e totalizante do divino.

 

Cleiton Donizete Corrêa Tereza é professor de História nas redes municipal e estadual em Poços de Caldas, especialista em História Contemporânea (PUC Minas), especialista em Planejamento, Implementação e Gestão de Educação a Distância (UFF), mestre e doutor em Ciências Humanas (Diversitas-FFLCH-USP), integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Administração Escolar (GEPAE-USP), membro do Coletivo Educação de Poços de Caldas e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
 

Edição: Leonardo Fernandes