Rio Grande do Sul

ARTIGO

Ação civil pública que busca reconhecer Guaíba como curso d'água é vital para evitar inundações

Ação que busca ampliar espectro protetivo desse importante corpo hídrico se ampara em robusta prova científica

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
"As transformações climáticas e o colapso socioambiental são uma realidade e devem ser consideradas como um imperativo ético no planejamento e nas políticas estratégicas globais dos Estados" - © Anselmo Cunha / AFP

Se as margens dos rios fossem reflorestadas, o solo absorveria mais água. Nem toda a água da chuva iria para o rio, parte ficaria no solo.

(Carlos Afonso Nobre, cientista e meteorologista brasileiro, em recente entrevista ao Site “Outras Palavras – jornalismo de profundidade e pós-capitalismo” em 14.05.2024).  

A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a “defesa do meio ambiente” (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral.

(Citação do relator ministro Celso de Melo, nos autos da ADI 3.540-MC/DF, DJ de 3/2/2006).

No contexto do colapso climático global que já não mais se anuncia, e sim torna-se uma presença real entre nós, como as recentes enchentes no Estado do Rio Grande do Sul – sobretudo em Porto Alegre e região metropolitana – estão a comprovar, emerge a singular centralidade de se estabelecer uma ampla e incondicional proteção do curso d’água Guaíba. Em meio aos muitos desafios que nos são impostos, o de salvar, confortar e reconstruir vidas e espaços de convivência, principalmente, há que também prestarmos atenção ao que as tragédias nos ensinam.

Neste cenário devastador causado pelas inundações, que estão a vitimar já mais de uma centena de pessoas e desabrigar outros milhares, nos parece oportuno lembrar que a Ação Civil Pública nº 5173696-61.2022.8.21.0001/RS, que ora tem seu curso junto ao 2º Juízo da 20ª Vara Cível e de Ações Especiais da Fazenda Pública do Foro Central da  Comarca de Porto Alegre, demanda ajuizada conjuntamente pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos, o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais e a Associação Gaúcha   de Proteção ao Ambiente Natural em 28.04.22, busca o reconhecimento judicial de que o Guaíba é um curso d’água natural e perene, com as implicações legais daí decorrentes.

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Amparadas em robusta prova científica que sustenta ser o Guaíba um curso d’água natural e perene de acordo com a definição legal, bem como em recente tese fixada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) referente ao Tema 1.010, que ampara juridicamente o pedido, as entidades autoras da ação, todas integrantes do movimento ecológico gaúcho, buscam com este reconhecimento judicial o alargamento do espectro protetivo desse importante corpo hídrico.

A consequência jurídica lógica e imediata deste reconhecimento judicial, uma vez fixado, é a declaração da existência de um espaço territorial especialmente protegido ao longo da faixa marginal do curso d’água Guaíba, medindo 500 metros de extensão desde a borda da calha do leito regular denominada de “Área de Preservação Permanente (APP)”, conforme o artigo 4º, inciso I, letra “e”, da Lei nº 12.651/12, que dispõe sobre a proteção da vegetação nativa.

Essa área protegida denominada de APP, por sua vez, é definida pelo artigo 3º, inciso I, da mesma Lei nº 12.651/12 como Área de Preservação Permanente – APP, nos seguintes termos: “área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”.

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A proteção desses espaços territoriais especiais faz-se necessária para que não só a própria integridade do corpo hídrico seja mantida, como, dentre outros aspectos, funcionem como zona de amortecimento e absorção de água, sobretudo em situações-limite como as que estamos enfrentando. 

São espaços onde é justamente a Natureza que define as regras e não a espécie humana. Não obstante, no momento que estes domínios naturais, que a lei quer preservados, são paulatinamente ocupados de forma desordenada (especulação imobiliária) e absolutamente desagregadora das suas funções naturais e intrínsecas, sua função biológica e ambiental fica obviamente ameaçada, o corpo hídrico em contínuo processo de ameaça ou mesmo perigo à sua integridade, bem como a população do entorno desprotegida e sujeita a catástrofes como a que vivemos.

Se fizermos um exercício de imaginação supondo que o curso d’água Guaíba tivesse preservada intacta já há muitos anos a sua faixa marginal protetiva (APP), não seria necessário muito esforço de raciocínio para percebermos que estaríamos tendo uma realidade bastante diversa da atual. No entanto, tal proteção obviamente implicaria em conter de forma preventiva e precaucional a especulação imobiliária no local.

A imaginação poderia avançar para concebermos que não seria de todo impossível admitir, por hipótese, que a faixa marginal de área inundada hoje pelo curso d’água Guaíba poderia assemelhar-se à dimensão estabelecida pela lei como APP para este curso d’água (500 metros). Ou seja: as faixas ocupadas com APP dos cursos d’água em áreas urbanas consolidadas, poderiam absorver grande parte – talvez a totalidade – do volume de água depositado nas áreas hoje inundadas, haja vista que tais áreas poderiam ser semelhantes em dimensões.

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Por outro lado, mais recentemente, em despacho judicial proferido nos autos da Ação Civil Pública nº 5173696-61.2022.8.21.0001/RS, decisão fundamentada em atual e inovadora doutrina e jurisprudência, a demanda foi reconhecida como “ação estrutural”. A fixação deste importante marco conceitual-processual é considerado pelas entidades autoras da ação judicial um avanço porque não só potencializa os efeitos da demanda, como lhe amplia o espectro cognitivo na medida em que reconhece o caráter de alta complexidade e indagação que lhe é intrínseco, como revela o seguinte excerto:    

 

[...] É o breve relato. Decido.
Com efeito, tratando-se de típica ação estrutural, adianto que a lógica do processo coletivo, necessariamente, deverá ser diversa daquela que rege as típicas ações individuais, como bem leciona o processualista Sérgio Cruz Arenhart:

"Além da necessidade de uma revisão conceitual da noção de contraditório, os processos estruturais também impõem um procedimento diferenciado, que não se amolda aos parâmetros tradicionais do processo individual".

O processo estrutural exige uma "releitura dos institutos tradicionais do direito processual", pois objetiva, essencialmente, "decisões    que    almejam    a alteração substancial, para o futuro, de determinada prática ou instituição", o que verifico no caso em apreço, em que se postula o reconhecimento do corpo hídrico denominado Guaíba como um curso d'água natural e perene, com múltiplas implicações jurídicas nas searas ambiental, urbanística, fundiária e econômica. (sem grifos no original quanto a esta parte final) [...]

 

Para além das questões jurídicas envolvidas, não obstante evidentemente a sua relevância, há que se dizer que dentre os múltiplos aspectos implicados na significância e amplitude em alto grau desta ação judicial, impõe-se, por outro lado, a reflexão acerca da ciência e de seu negacionismo em face do atual cenário.

Lamentavelmente, o mesmo Estado que chora, sofre e lamenta a catástrofe climática, perde com ela vidas humanas e conta prejuízos materiais (tangíveis) e imateriais (intangíveis) incomensuráveis, é aquele que mais alberga o negacionismo no que tange às mudanças climáticas e aos históricos alertas do movimento ecológico.

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Não há, entre muitos de nós, gaúchos e gaúchas “que se orgulham de suas façanhas”, sobretudo, e o que é pior, em considerável parcela de nosso Parlamento e, de forma óbvia, nos atuais ocupantes do executivo estadual e municipal, honestidade moral e intelectual bastante para admitir o que é notório e hoje poderíamos  nominar de “a força coercitiva da verdade autoevidente” (a expressão é de Hannah Arendt): as transformações climáticas e o colapso socioambiental são uma realidade e devem ser consideradas como um imperativo ético no planejamento e nas políticas estratégicas globais dos Estados. Para o azar dos negacionistas, “a honestidade é a melhor política, porque é imune a objeções, aliás, é a condição indispensável da política”, dizia E. Kant (Zum ewigen Frieden, Apêndice, I).

Devemos prestar atenção que quando cientistas como Carlos Afonso Nobre e juristas como Celso de Melo, ambos homens de ciência, assim como muitas mulheres o são, ao referirem os ditos que encimam este artigo, é preciso pensar. 

Pensar não faz mal, agir menos ainda. Aliás, como ensina Ricardo Timm de Souza, professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUCRS, “devemos pensar o tempo todo porque, se não pensarmos, alguém pensará por nós”. A tragédia implícita nesse precioso ensinamento filosófico é que, nos dias atuais, aquele que pode ocupar o espaço de pensar por nós é justamente o negacionista. Portanto, pensemos! Pensemos, sempre, pensemos muito e a todo o momento. Pensemos e ajamos, sobretudo pelo bem da justiça e da vida.       

* José Renato de Oliveira Barcelos é advogado, doutorando em Filosofia (PUCRS), área de concentração Ética e Filosofia Política (bolsista Capes/Proex), com período de estudos em nível de doutorado sanduíche na Universidade de Coimbra/Portugal; mestre em Direito Público (Unisinos), área de concentração Direito Público (bolsista Capes/CNPq); especialista em Direito Ambiental Nacional e Internacional (Ufrgs); bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (PUCRS); e-mail: [email protected]

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato. 


Edição: Katia Marko