Excesso de telas está longe de ser algo específico da infância e adolescência
Por Natália Gil
Uma busca rápida na internet resulta em uma quantidade enorme de artigos sobre a preocupação acerca do tempo excessivo que as crianças ficam em telas. Não que seja um temor exatamente novo. Nas décadas finais do século XX, muito se falava sobre o fato de que a TV tinha se tornado uma babá eletrônica e que as crianças já não brincavam nas ruas, praças, quintais e pátios. O problema das “crianças de apartamento” preocupava pediatras, psicólogos e famílias. Nem por isso nós – crianças dos anos 1970 e 1980 – deixamos de ficar manhãs e tardes inteiras consumindo tudo e qualquer coisa que passava na tela do televisor.
Recentemente, no entanto, o debate tem se direcionado às telas portáteis e, embora a TV ainda esteja bem presente nas casas brasileiras, o temor se concentra no tempo que crianças e adolescentes passam colados em celulares e tablets. O fato de que tais equipamentos possam ir com as pessoas para todo canto agrava a situação. Além disso, a interação nesses dispositivos costuma ser conectada à internet e isso implica o risco que os pequenos cidadãos digitais fiquem expostos à abordagem de qualquer um, como se estivessem sozinhos numa rua qualquer da cidade em meio a pessoas desconhecidas que vão e vem. É inegável que há motivo para nos preocuparmos.
A Sociedade Brasileira de Pediatria alerta para os riscos de que o contato de crianças e adolescente com telas possa causar danos ao seu desenvolvimento físico, emocional e social. Portanto, recomenda que a interação das crianças com esses dispositivos seja sempre supervisionada pelos adultos que cuidam delas e que se limite o tempo por faixa etária: menores de 2 anos não devem ter nenhum contato com telas ou videogames; dos 2 aos 5 anos, até uma hora por dia; dos 6 aos 10 anos, entre uma e duas horas por dia e, dos 11 aos 18 anos, entre duas e três horas por dia.
A Organização Mundial de Saúde, em 2019, recomendou que crianças de até cinco anos não ficassem mais do que uma hora por dia em frente das telas de celulares, computadores ou TVs. Para os bebês até um ano, a recomendação era que não passassem nem um minuto diante desses dispositivos eletrônicos. Mas isso foi antes da pandemia de Covid-19 e, ainda que a recomendação continue a mesma, em todo lugar, ao invés de nos distanciarmos das telas, aprendemos a usá-las cada vez mais. Inclusive como estratégia para entreter nossas crianças e adolescentes.
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Como mãe, reconheço que a possibilidade de meus filhos “encontrarem” amigos on-line em jogos de videogame e redes sociais foi fundamental para a saúde mental de todos nós em momentos de distanciamento físico, que não se restringem apenas a um lockdown de tempos pandêmicos. No último ano, ficamos morando fora do Brasil por 10 meses e eu, sinceramente, não sei o que seria de nós se não pudéssemos estar em contato diário via telas com as pessoas amigas e amadas que continuavam por aqui.
Os especialistas na temática da relação das crianças com as telas são unânimes em afirmar que é preciso mais estudos para que haja uma definição precisa acerca dos danos e dos ganhos em relação ao tempo de uso. Porque, sim, eles também apontam muitas vantagens na interação das pessoas com tais dispositivos.
Regulamentação
Entretanto, como em relação a qualquer coisa, não é difícil concluir que o excesso faz mal. Para piorar, tem uma questão seríssima sobre a qual temos falado pouco: aplicativos e jogos eletrônicos ganham muito dinheiro quando conseguem nos manter mais tempo conectados e, portanto, têm sido concebidos deliberadamente para viciar.
Pensando em proteger as crianças, há um Projeto de Lei tramitando no Senado Federal que pretende regular a matéria, estabelecendo regras para as redes sociais, aplicativos, sites, jogos eletrônicos, softwares, produtos e serviços virtuais em relação à idade dos usuários e impondo por lei que crianças só possam acessar a internet com supervisão dos adultos. A intenção pode ser considerada boa, mas não me parece realista a pretensão de controlar o que acontece em cada casa e na relação de cada criança com os adultos responsáveis por ela.
Seguindo pelo mesmo caminho, tanto em termos de boas intenções quanto em falta de noção da realidade, o Ministério da Educação anunciou no final do mês passado que pretende proibir o uso de celulares em sala de aula.
Os celulares têm representado um adversário difícil de combater na batalha pela atenção dos estudantes. Inclusive na universidade, o problema tem estado presente e é forçoso admitir que mesmo meu melhor empenho para tornar as aulas atrativas não tem nenhuma chance diante do repertório variado de produtos de entretenimento disponível na internet. Dependo do autocontrole dos meus estudantes. A competição é desleal porque aula não é entretenimento (e não deve mesmo ser!).
Problema é real, mas proibir não é o melhor caminho
Aprender exige um engajamento e uma atividade mental que pode ser prazerosa, mas é muito diferente daquela que somos levados a ter nos momentos de relaxamento e lazer.
Reconheço, portanto, que o problema é real, que é preciso fazer alguma coisa, mas sou do grupo que acha que proibir não é o melhor caminho. Duas são as razões que quero evocar aqui. Primeiro porque a escola é um espaço para aprender muitas coisas, inclusive a efetivamente ter maior autocontrole. Banir os celulares desse espaço, além de privar estudantes e professores de ter em mãos um recurso muito útil de apoio ao trabalho pedagógico e à aprendizagem, tira a possibilidade do exercício prático e da reflexão partilhada sobre a importância de definirmos momentos com celular e sem ele.
Não vou nem mencionar o fato de quão complicado (para não dizer impossível) seria garantir o cumprimento da lei e realmente impedir que os celulares entrem na escola; quero logo ir para o ponto que considero principal.
Diálogo com adultos
Penso que qualquer tentativa de proteger as crianças tem que passar por uma conversa séria com os adultos, que precisam rever suas próprias posturas em face das telas.
Me incomoda muito quando os adultos são incapazes de se olharem no espelho para refletir sobre suas próprias dificuldades e projetam nas crianças e nos adolescentes toda a perfeição de comportamento pretendida que eles próprios não têm. É injusto dizermos, nos dias atuais, que são as crianças e os adolescentes que não conseguem se controlar diante das telas quando basta olhar ao redor, em qualquer contexto, para ver que os adultos não desgrudam de seus celulares.
O Brasil é um dos campeões mundiais em horas de uso das redes sociais. Especialistas na temática têm alertado acerca do aumento na dependência tecnológica. Sabe-se que 84% dos brasileiros têm acesso à internet e em média passam 9 horas diárias diante das telas (a média mundial é de 6,5 horas). Sintomas de estresse, depressão e ansiedade têm sido associados ao uso excessivo de telas por adultos. O vício em jogos de aposta on-line tem atingido níveis alarmantes. O problema do excesso de telas, evidentemente, está longe de ser algo específico da infância e adolescência.
Ou seja, as ações sobre essa questão deveriam começar por uma reflexão mais ampliada que envolva toda a sociedade.
Não podemos ficar apenas na proibição de uso ou nas tentativas de banir um equipamento que tem também muitas excelentes e saudáveis funcionalidades. É preciso, além disso, discutir que não basta reduzir o tempo nas telas sem que se diversifiquem as atividades e se enriqueça o uso do tempo fora delas.
Não dá para querer proteger as crianças e os adolescente se o que se vê por todo lado, da reunião de trabalho ao restaurante, são adultos colados em celulares, computadores e tablets.
Natália Gil é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do grupo de pesquisa “HISTEB - História da escolarização no Brasil: políticas e discursos especializados”. Tem se dedicado a investigar a história da exclusão na escola brasileira e as implicações dos processos de quantificação em educação.
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Leia outros artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG
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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida